CRIANÇAS E JOVENS NO PLANTIO DE DROGAS ILÍCITAS:
UMA ABORDAGEM A PARTIR DA GARANTIA,
PROMOÇÃO E REPARAÇÃO DOS DIREITOS DOS CAMPONESES NO BRASIL
Jorge Atílio Silva
Iulianelli[1]
O Narconegócio é uma das atividades produtivas mais
lucrativas do Capitalismo contemporâneo. Calcula‑se que o conjunto das
atividades do crime organizado faça girar no mundo a cifra de um trilhão de
dólares. Apenas o narconegócio, ou o tráfico de drogas, circula 411 bilhões de
dólares (Cf. undcp drug report: 2000). Em 1998, avaliou‑se que o comércio
da cannabis girou em torno de 41,5 bilhões de dólares (Cf. Ibdf). Trata‑se,
portanto, de um negócio muito lucrativo, que faz circular montanhas de
dinheiro, dinheiro que é reinvestido em atividades legais, como construção civil
e criação de gado, e em atividades ilegais, como contrabando de armas, por
exemplo. O fato é de uma dimensão econômica insofismável. Não parece que se
possa pensar a economia mundializada sem esses recursos circulantes. O caso da
maconha é muito interesante nesse sentido. A maconha é a droga mais consumida
no mundo contemporâneo, estima‑se que 144 milhões de pessoas a consumam,
ou seja, 2,42% da população mundial. Entre os 134 países que relataram, em
2000, serem produtores de drogas, 96% produzem maconha. Esses dados não são
espantosos. Eles mostram uma atividade produtiva integrada ao funcionamento da
totalidade do sistema.
Algumas observações metodológicas sobre as informações
que vêm a seguir. Primeiramente, a investigação de atividades ilícitas é um campo
difícil. Isto tem que ver com muitos fatores dentre os quais o risco de morte
que correm os pesquisadores. A maior fonte de informação é o próprio aparelho
de repressão do Estado, o que, como demais em relação a todo informante
compromissado com o tema, confere a necessidade de relativizar a informação.
KOINONIA tem mantido uma atuação no Submédio São Francisco, especialmente em
relação aos atingidos pela Barragem de Itaparica, que remonta à segunda metade
da década de 1980. Em relação às atividade de plantio de drogas ilícitas temos
mantido uma investigação sistemática a partir de 1997, atividade de
investigação implementada após o assassinato de Fulgêncio Manoel da Silva.
Em relação à pesquisa na região de Itaparica, sobre os
efeitos do plantio de dorgas ilícitas para a vida camponesa, temos mantido um
levantamento sistemático de informações sobre as taxas de mortes por causa
externa, especialmente entre os jovens – e as séries históricas têm demonstrado
que um dos efeitos da política de erradicação de drogas é o incremento dessas
mortes; um levantamento, por meio de grupos focais de jovens, sobre as
atividades juvenis naquelas zonas rurais, no plantio em geral; e um
levantamento, por meio de entrevistas abertas, com atores privilegiados que
oferecem uma visão dos efeitos deste plantio para o desenvolvimento da região,
em geral. Nossas informações são, por conseguinte, sobretudo, qualitativas.
Alguns teóricos (Procópio: 1996; Motta Ribeiro: 2000;
Umprimny: 1996; Iulianelli: 2000; Iulianelli e Fraga: 2002) têm sugerido a
necessidade de observar o processo recente da narcoprodução como uma face da
produção capitalista. Na verdade, eles concebem que, na atual fase produtiva
das drogas, elas têm o modelo produtivo do agronegócio. Para podermos realizar
uma análise sociológica do narcoplantio da cannabis, precisaremos oferecer
cinco passos. O primeiro, (1) é uma caracterização do modo de produção camponês
e dos direitos dos trabalhadores rurais. Nesse passo, será necessário lançar
mãos de informações sobre as relações sociais construídas historicamente no
campo e sobre as dificuldades específicas para as informações sobre o
narcoplantio da cannabis. Em segundo lugar, (2) devemos observar o processo
pelo qual esse modo de produção camponês para o narcoplantio passa a ser
integrado a um modelo de agronegócio do ilícito, que podemos chamar de
narconegócio. Em terceiro lugar, (3) devemos compreender os processos de
inserção do narcoplantio na economia mundial e nas economias locais, como
construtores de redes econômicas e de poder. Em quarto lugar, (4) devemos
identificar os processos pelos quais o narcoplantio da cannabis sofre um
determinado tipo de controle social, policial, e considerar as implicações
sociais dessa espécie de controle. Precisamos depois(5), para permanecer apenas
no aspecto do agronegócio que é o narcoplantio da cannabis, fazer algumas
considerações sobre o caso específico do polígono da maconha, como um espelho
do processo de integração camponesa na narcoprodução agrícola e como uma
estratégia de sobrevivência camponesa. (6) Em seguida, uma visão sistemática da
plantio de drogas ilícitas. E, finalmente, (7) considerações sobre a situação
juvenil e (8) políticas públicas para a redução de danos do envolvimento
camponês com o plantio de drogas ilícitas.
I
Por modo de produção camponês se compreende
geralmente, “agricultores familiares que, com a ajuda de equipamentos simples,
produzem principalmente para o próprio consumo e para o cumprimento das
obrigações com os poderes políticos e econômicos”(Shanin: 1973, 240). Agrega-se
a isso a famosa relativa independência frente ao mercado. Isso criaria uma
polarização entre unidade familiar de produção e unidade capitalista
de produção agrícola. A primeira, com uma relativa independência em relação
ao mercado, e a segunda subordinada às regras da geração de mais‑valia.
Essa distinção, entretanto, pauta uma polêmica antiga na sociologia e
antropologia rural. Não obstante a polêmica, estaremos nos pautando por uma
leitura do campesinato brasileiro, reconhecendo a agricultura familiar, ou a
unidade familiar de produção, como a organização social mais disseminada nas
unidades produtivas camponesas, e a inclusão do assalariamento rural como uma
das estratégias de sobrevivência dos camponeses – sem necessariamente
significar a desagregação de uma unidade familiar de produção, como nota
Wanderley (Wanderley: 1995, 55-57). Diante da diversidade de posicionamentos,
nos apoiamos em Luiz Eduardo Soares que oferece a seguinte noção:
De um modo geral se
reconhece que a especificidade do campesinato reside no caráter familiar da
produção que empreende, no fato de que o grupo doméstico compõe uma unidade de
produção e consumo, e na relativa independência da unidade frente ao mercado.
Por relativa independência se entende que seria própria e distintiva do
campesinato uma certa capacidade, derivada do controle que exerce sobre os
meios de produção e sobre o processo do trabalho, e da natureza especial do
meio de produção essencial, a terra. (Soares: 1981, 204).
A terra, a família camponesa, a comunidade rural
estabelecem relações sociais muito específicas. Maria Nazareth Wanderley notou
que o espaço social da agricultura familiar é um espaço em construção. Assim, é
relativamente significativo tanto os processos de auto‑exploração, como a
capacidade de troca de bens primários no mercado. Não há como considerar a
pequena propriedade, a propriedade camponesa, a unidade familiar de produção
agrícola, externamente aos processos de acumulação capitalista. O modo de
produção camponês, em sociedades como a brasileira, sempre sofreu os efeitos do
poder das oligarquias, sobretudo com a formação dos latifúndios – a grande
lavoura, a terra cativa (José de Souza Martins), que a partir dos remotos
tempos da colonização, e com o processo de urbanização e industrialização da
sociedade brasileira, obrigou os camponeses abandonarem suas terras. Como nota
Ana Maria Motta Ribeiro:
O povo do mundo rural e o
ambiente social que organizava era ativo e se precarizava justo porque, na
realidade, resultava de uma experiência de desigualdade a partir da qual
sustentava com os excedentes da riqueza que produzia com o trabalho e a
produção, gerados no campo, os elogiados processos, considerados ‘modernos’, de
urbanização e industrialização do sul e sudeste (Motta Ribeiro: 2002, 25).
Há uma condição específica do campesinato, que,
diferentemente da mão‑de‑obra mercantilizada, que vive basicamente
do assalariamento, constrói estratégias de sobrevivência a partir da auto‑exploração
da força de trabalho, do caráter familiar da produção e consumo, daquela certa
flexibilidade econômica que lhe confere certo poder competitivo em mercados de
bens de primeira necessidade. A partir do final do século XIX, como analisa
José de Souza Martins, a grande lavoura, a empresa agrícola e o latifúndio, se
tornara preciosa para o processo de acumulação capitalista que potencializou a
urbanização e a industrialização. Segundo ele, a questão agrária “se manifesta
não como irracionalidade para o desenvolvimento capitalista, mas como problema
de emprego, trabalho e sobrevivência para as populações pobres que o próprio
caráter capitalista da propriedade cria ao se modernizar” (Martins: 2000, 7). O
cativeiro da terra torna o trabalhador rural livre, livre dos meios de produção
para negociar a possibilidade de ser explorado como mão-de‑obra,
sobretudo, da grande lavoura. Como demonstra José de Souza Martins, durante os
anos de 1930, com o cativeiro da terra, se expande a pequena propriedade
familiar no Brasil, especialmente em São Paulo. Para a população camponesa
restavam duas alternativas, conquistar uma pequena propriedade ou migrar para
as cidades, os centros urbanos, transformando‑se em sub-assalariados
urbanos.
Como nota o sociólogo:
Até os anos cinqüenta, até
a era Kubistchek, na verdade final da era Vargas, o modelo econômico funcionou
e bem: excluía no campo e incluía na cidade, impedindo que a questão agrária se
tornasse evidente como problema social. O início, difuso e confuso da luta pela
reforma agrária nos anos cinqüenta, apenas indicia a latência da questão
agrária, mas não a sua consistência, sobretudo como fator de desestabilização
da ordem política. É significativo que nesse mesmo momento, a questão agrária
surja como questão do trabalho, com a difusão da sazonalidade do trabalho rural
e sua terceirização, tanto no Nordeste canavieiro quanto no sudeste cafeeiro.
(Martins: 2000, 8).
A questão agrária e a questão do trabalho são
indissociáveis no processo do Capitalismo Periférico no qual se insere o
Brasil. A modernização conservadora, pela qual opta as elites brasileiras – a
famosa via prussiana (Lênin), ou Oriental (Gramsci) – dos acordos pela
cumieira, tratando às maiorias dos porões como ratos, gera o caldo cultural
explosivo que ora assistimos: sem a solução da questão agrária no campo,
transformando‑o num cenário de contínua violência – na luta pela terra e,
também, com a expansão da presença do narconegócio no campo; e sem a solução da
questão do trabalho e do caos urbano que, entre outras calamidades, ressoa com
a explosão das guerras de controle do narconegócio nas cidades. Talvez, essa
seja uma das principais causas para a explicação da espiral de violência que
ora nos encontramos: a contínua violação de direitos dos trabalhadores rurais,
a quase completa ausência de políticas públicas sociais no campo e na cidade –
especialmente em relação à reforma agrária, políticas de geração de emprego e
renda, educação e saúde.
Durante todos esses anos, a população camponesa reagiu
– assim como permanece construindo ações de resistência. Como nota Ana Maria
Motta Ribeiro, as relações de força nunca foram muito favoráveis aos
camponeses. Entre essas experiências de resistência vale destacar as Ligas
Camponesas. A partir da luta daquela população pernambucana se lançava no
cenário nacional, como temas fundamentais, a luta pela terra e a destruição do
campesinato. As elites brasileiras se recusaram a um pacto político com as
classes trabalhadoras. O que levaria a uma transformação das condições sociais
de base da sociedade. Como observa Celso Furtado:
O rápido crescimento da
economia brasileira entre os anos 30 e 70 apoiou‑se em boa medida em
transferências inter‑regionais (no País) de recursos e em concentração social
de renda facilitada pela mobilidade geográfica da população. Se houvesse
obstáculos institucionais à mobilidade da mão‑de‑obra, os salários
reais ter‑se‑iam elevado de forma bem mais acentudada nas regiões
em rápida industrialização no Sul do país. Nesse caso, o crescimento global da
economia teria sido menor, e a urbanização menos intensa. (Furtado: 1992).
A partir dos anos de 1960-1970 a questão agrária
apenas se agudizou. A concentração fundiária crescia às expensas do apoio dos
governos da ditadura militar. Por seu turno, as populações camponesas
permaneceram construindo ações de resistência, especialmente durante os anos de
1970, na segunda metade, com a criação da Comissão de Pastoral da Terra, em
1975. Os anos de 1980 assistem uma diversificação da organização rural, com uma
maior presença das mulheres nas lutas, evocando a questão de gênero, passando,
também, devido os Grandes Projetos de Investimento (GPI, Alfredo Wagner), como
as hidrelétricas, que gerou o Movimento dos Atingidos por Barragem – em
especial, a partir do caso da hidrelétrica de Itaparica, entre o norte da Bahia
e o sudoeste de Pernambuco, no Submédio São Francisco.
Sobremaneira se destaca nos anos de 1980 o surgimento
do Movimento dos Sem Terra – movimento dos trabalhadores rurais sem‑terra.
Na segunda metade dos anos de 1980, com a articulação das elites agrárias, dos
grandes proprietários, que, apoiados pelos governos, armados até os dentes,
combatiam os trabalhadores rurais sem‑terra que lutam para conquistar a
terra: ocupar, produzir, resistir. Falando sobre o período de 1985-1989 nos
conta Stédile sobre o MST:
Estávamos em fase de gestação. Nessa época, o governo
da Nova República tratava de demonstrar à sociedade seu empenho pela Reforma
Agrária. Para isso, cooptou o PC do B, o PCB e a CONTAG. Naquele momento o
INCRA estava dirigido por pessoas desses partidos e organizações.O Congresso da
CONTAG, de 1985, foi um festival de discursos de ministros. Falaram onze
ministros, e o próprio Sarney estava presente. Nós insistíamos, ao contrário,
que a Reforma Agrária apenas avançaria por meio das ocupações de terra. Foi
quando levantamos aquelas bandeiras: Sem reforma agrária não há democracia.
Dizíamos com isso que democracia não é apenas votar. Também dizíamos: A
ocupação é a única solução. Como a Nova República dizia que era um governo
comprometido com a democracia, não pode nos reprimir. Foi o período no qual
mais ocupamos as sedes do INCRA, e um dos mais férteis em termos de conquistas
concretas, parecido ao que ocorreu entre 1995‑1997. Produziram‑se
muitas expropriações e muitos assentamentos. (Stédile: 2001, 64).
Enfim, a partir dos anos de 1930, e especialmente a
partir dos anos de 1950, temos um processo de concentração da propriedade
fundiária e expropriação do campesinato. Como disse noutra oportunidade, o
Brasil apresenta atualmente o maior índice de concentração fundiária do mundo,
com o coeficiente GINI da ordem de 0.9 – 1.0, nessa escala, é concentração
absoluta (Iulianelli e Motta Ribeiro: 2000, 9). Segundo o censo agropecuário de
1996, corresponde a 4,8 milhões o total de estabelecimentos agrícolas
existentes no país, numa área ocupada de 353,6 milhões de hectares. Em 20% da
área total aglomeram‑se 89,1% dos imóveis, que são minifúndios e
propriedades de 100 ha. Polarizando, as grandes propriedades, áreas acima de
1000 ha, constituem 1% do total dos imóveis, fartamente espalhados em 45% do
total das terras cadastradas. Dentre estes, mais de 85 mil imóveis, fartamente
considerados como latifúndios são improdutivos.
Tudo isso constrói uma situação explosiva e violenta,
com uma série de conflitos sociais agrários. A Comissão de Pastoral da
Terra tem registrado sistematicamente esse despropósito. As análises
identificam que nas décadas de 1970 e 1980 os conflitos eram devidos,
principalmente, a expulsão e expropriação dos camponeses, sobretudo na
fronteira agrícola, no Norte e no Centro‑Oeste. A partir de meados da
década de 1980 as ocupações de terra modificam o caráter da violência contra os
trabalhadores rurais. Na década de 1990, houve uma ampliação territorial da
violência no campo. Há que se destacar que os mediadores dos conflitos também
mudaram, se nos anos de 1970 e 1980 principalmente as organizações religiosas
cumpriram esse papel, na década de 1990 o Estado, por meio de seu aparato de
repressão e judicial, foi quem cumpriu este papel. Apenas para identificar a
magnitude e a qualidade da natureza da violência no campo reproduzimos uma
tabela da CPT referente aos anos de 1993-1998.
Tabela: violência no campo, 1993/1998
Formas
de violência |
1993 |
1994 |
1995 |
1996 |
1997 |
1998 |
Variação
1997/1998 |
Expulsão(1) |
1.369 |
388 |
1.146 |
270 |
304 |
2.208 |
626,32 |
Despejo
jurídico (1) |
12.469 |
17.687 |
12.832 |
17.595 |
17.070 |
18.593 |
8,92 |
Ameaça
de expulsão (1) |
5.234 |
4.535 |
2.114 |
2.923 |
720 |
1.975 |
174,31 |
Ameaça
de despejo (1) |
6.3578 |
13.182 |
13.300 |
19.896 |
23.515 |
7.937 |
-66,25 |
Destruição
de casas (1) |
667 |
1.901 |
1.112 |
1.337 |
2.624 |
2.782 |
6,02 |
Destruição
das roças (1) |
1.419 |
5.239 |
1.589 |
3.677 |
1.307 |
2.875 |
119,97 |
Destruição
de pertences (1) |
1.283 |
1.685 |
770 |
1.146 |
3.940 |
2.130 |
-45,94 |
Assassinatos
(2) |
52 |
47 |
41 |
54 |
30 |
47 |
56,67 |
Tentativa
de assassinatos (2) |
37 |
62 |
43 |
71 |
37 |
46 |
24,32 |
Ameaça
de morte (2) |
154 |
212 |
155 |
88 |
92 |
88 |
-4,35 |
Agredidos
fisicamente (2) |
1.080 |
1.017 |
2.010 |
124 |
640 |
164 |
-74,38 |
Lesões
corporais (2) |
2.048 |
151 |
528 |
220 |
109 |
207 |
89.91 |
Torturados
(2) |
87 |
39 |
72 |
12 |
5 |
35 |
600,00 |
Presos
(2) |
272 |
333 |
833 |
198 |
381 |
466 |
22,31 |
Totais |
32.528 |
46.478 |
36.545 |
47.611 |
50.774 |
39.553 |
-22,10 |
Fonte:
CPT © Projeto de Pesquisa vinculada a UFPa: Cartografia da violência no campo
(1)
Violência contra posse e propriedade‑patrimônio (2) Violência contra
pessoa. Obs.: Todas as variáveis identificadas com (1) os valores têm por
unidade número de famílias. As variáveis identificadas com (2) os valores têm
por unidade números.
Como se pode verificar pela
tabela, os anos de 1990 foram consumidores de trabalhadores rurais. É mais
grave se consideramos que a área em conflito corresponde a 10% de toda área
ocupada por estabelecimentos agrícolas, e bem menor que a área ocupara pelos 85
mil latifúndios improdutivos. Vale notar que, conforme a análise de Wilson José
Barp e Ana Rosa Barganha Barp (CPT: 1999), vinculam o crescimento da violência
aos problemas estruturais e às políticas de desenvolvimento regionais. No
Centro‑Oeste, os anos de 1990 assistiram à implantação de agroindústrias
pecuaristas, com incentivo público, aumentando os índices de crescimento
econômico e a violência contra os camponeses. No Nordeste, a violência cresce de
forma continuada a partir de 1995, segundo eles, associado ao fenômeno da seca
– e, acrescento eu, ao processo de incremento produtivo do narcoplantio do
ilícito. No Sudeste, a situação parece sofrer um reacomodamento, após os
incidentes do Pontal do Paranapanema, que realçaram o papel do MST. No Sul,
surpreendentemente, considerada a região mais desenvolvida em relação à questão
agrária, houve um aumento da violência, especialmente no Paraná.
Acrescenta‑se a esse quadro, já lastimável, a
atividade da escravidão de trabalhadoras e trabalhadores rurais, segundo José
Martins de Souza, 90 mil pessoas foram escravizadas temporariamente entre 1969‑1994.
De modo especial, durante o processo de expansão da fronteira agrícola, na
região amazônica, da derrubada da mata para a atividade pecuária. Além dos
casos hediondos de escravidão sexual de meninas, especialmente nas áreas de
garimpo (Apud Iulianelli & Motta Ribeiro: 2000).
O conjunto de políticas públicas agrárias,
especialmente a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, que deveriam,
segundo o próprio governo, corresponder a atenuantes da questão agrária, ao que
parece, pelos indicadores acima, só fez agravar tal situação. Talvez,
iniciativas de contra‑reforma agrária, como a Cédula da Terra, comprovadamente
um instrumento também concentrador de terras, associado a iniciativas de
condenação judicial das ocupações e da punição aos ocupantes com o retardamento
da solução legal dos assentamentos, apenas agravaram mais o problema. O vácuo
de presença do Estado, por meio de políticas agrárias em favor dos camponeses,
e as iniciativas de políticas do Ministério de Desenvolvimento Agrário apenas
agravaram a situação. Não deve ser mera coincidência que o incremento da
produção agrícola da cannabis tenha crescido nesse período de políticas de
contra‑reforma agrária.
Especialmente as políticas governamentais voltadas
para a agricultura familiar não significaram um benefício para este setor. Os
estudos mostram que entre 1986 e 1999 houve uma diminuição dos recursos
aplicados à agricultura, como um todo, considerando o mesmo período anterior
(1973-1986). Os recursos destinados aos mini e pequenos produtores rurais, nos
anos de 1996 a 1998, foram, respectivamente, de acordo com o Orçamento Geral da
União, 346,6 milhões de reais, 243,7 milhões dos quais foram executados 204,6
milhões de reais,e 91 milhões de reais. Vale notar que foram anos de grandes
conflitos sociais no campo.
Esse fenômeno de diminuição
do investimento governamental corresponde ao prognóstico do Ministro do
Planejamento, Pedro Malan, segundo o qual em 2013 o Brasil terá apenas 5% de
sua população vivendo no campo, e da agricultura. O baixo investimento direto
corresponde, por sua vez, a criação de mecanismos operados via Bolsas de
Mercadorias e de Futuros, quase absolutamente inacessíveis ao setor da
agricultura familiar. Houve uma transferência de responsabilidade para a
iniciativa privada, deixando de ser determinado pelo poder público uma política
de preços e de garantia de abastecimento alimentar da população. Como solução
para esse projeto excludente, o governo federal apresenta a panacéia do PRONAF
– Programa Nacional para a Agricultura Familiar. Entretanto, o governo afirma
que disporia de 1 bilhão de reais entre 1995/1996, e aplicou 535 milhões
naquele período. Entre 1996/1997 afirmou aplicar 1,65 bilhões, e aplicou 1
bilhão.
Não obstante tudo isso, a agricultura familiar
permanece responsável por um quarto da produção agrícola nacional. Basicamente,
é o setor prioritariamente responsável pelo abastecimento interno. Além de ter
exportado, em 2001, 32,54% de todas as exportações do agronegócio, ou seja, 4,4
bilhões de dólares. A agricultura familiar, como a caracterizou a professora
Sonia Bergamasco (Bergamasco: 1995, 176) tem os seguintes traços
característicos: basicamente é de atividade de culturas, apenas uma pequena
parcela é pecuarista, embora, em determinadas regiões, como nas áreas de
sequeiro do Nordeste, exista uma pecuária de pequeno porte; há uma alta
proporção de jovens e mulheres integrados como mão‑de‑obra – no
processo de auto‑exploração, mais da metade dos trabalhadores são
trabalhadores familiares; a população ocupada tem, em geral, um baixo grau de
instrução.
No Brasil, em nossos 850 milhões de hectares, 375
milhões estão ocupados por estabelecimentos agrários. Deles, 78 milhões de
hectares são ocupados pela agricultura familiar. Esse setor ocupa 54% da mão‑de‑obra
ocupada com a agricultura. No Nordeste, há 2,1 milhões de pequenas propriedades
rurais, ocupando 6,4 milhões de pessoas, ocupando 27.1 milhões de hectares.
Nessas propriedades, na região do Submédio São Francisco, havia uma ocupação
com a produção de grãos, algodão e horti‑fruti. O conjunto dos preços
desses produtos vem sofrendo uma variação negativa ao longo das duas últimas
décadas. Além disso, houve o famoso escândalo da mandioca, quebrando e
falindo muitos dos pequenos produtores. Esses fatores e o conjunto daqueles
outros descritos acima levou aquela região a se tornar uma das mais importantes
produtoras de cannabis na América Latina, e, indubitavelmente, a mais
importante produtora da cannabis no Brasil.
Há que se notar que a presença da cannabis
precede esses escândalos. A cannabis, como se sabe, é de origem
asiática, da Índia. Há relatos de presença da erva no Brasil ainda no período
colonial. Nos anos de 1950, uma das mais importantes pesquisas sobre o Nordeste
brasileiro, O homem do Vale do São Francisco, coordenada pelo sociólogo
americano Donald Pierson, identificou o uso da cannabis pela população
camponesa, durante festejos. A criminalização da cannabis é recente,
datando dos anos de 1930. Essa criminalização sempre implicou na política de
erradicação do plantio da erva.
Há relatos, oferecidos ao órgão das Nações Unidas
responsável pela política de combate às drogas, desde 1941. Há mais de 60 anos,
portanto, a política pública de erradicação do plantio tem sido usada.
Infelizmente, sem as correspondentes políticas que visassem o desenvolvimento
nacional e, especialmente, a atenção ao desenvolvimento dos camponeses no
Brasil. Como vimos, a ausência daquelas políticas públicas manteve, agudizou e
prejudicou a já tão grave questão agrária.
Segundo a Organização das Nações Unidas para o Combate
às Drogas (UNDCP), é extremamente difícil estimar a extensão do cultivo ilícito
da cannabis, bem como a produção e o tráfico porque existe o crescimento
natural da erva, uma natureza diversificada de cultivo – inclusive com o uso de
sementes trangênicas – e ela representa uma pequena parcela do dinheiro gerado com o tráfico, pouco mais
que 10% do valor anual, embora chegando à não pouco expressiva quantia de 41,5
bilhões de dólares. De qualquer maneira, a extensão necessária para o cultivo
da maconha é muito maior que aquela necessária para o cultivo de outras ervas, tais
como o ópio e a folha de coca, como pode se ver no gráfico abaixo.
Produto agrícola ilícito |
Área agricultável estimada (1.000ha) (Mundo) |
Drogas produzidas |
Principais países produtores na América Latina |
Tendência da produção na década de 1990 |
Ópio |
217 |
Heroína |
México,
Guatemala, Colômbia |
Estável |
Folha
de coca |
183 |
Cocaína |
Colômbia, Bolívia,
Peru |
Declínio |
Cannabis |
1.850 |
Maconha
e Haxixe |
Colômbia,
Peru |
Crescimento |
Fonte: UNDCP, report 2000.
A cannabis é produzida em
120 países dos 134 que apresentam relatórios de apreensões policiais para a
UNDCP. Segundo a Interpol, há 67 países fornecedores de cannabis para o
tráfico, sendo 13 na América Latina, entre os quais o Brasil. Dado a
diversidade do cultivo, se considera a existência de um cultivo aberto, com
erva selvagem, um cultivo fechado (in door), inclusive hidropônico e há a
consideração da existência da erva selvagem. Tudo isso torna a estimativa da
área cultivada mais complexo. Mesmo assim, conforme a UNDCP, existe a seguinte
estimativa referente ao cultivo aberto:
Área
cultivada de cannabis (ha) |
Paíse
e regiões |
1.850.000 |
Mundo |
1.000.000 |
Comunidade
dos Países Independentes (ex-URSS) |
400.000 |
Kazaquistão |
50.000 |
Marrocos |
5.000 |
Colômbia |
3.700 |
México |
Fonte: UNDCP, report 2000.
Apesar dessa dificuldade,
considerando que as estimativas são realizadas a partir dos dados da apreensão
da erva, podemos fazer a seguinte comparação, que parece muito pertinente, a
partir dos dados mundiais de apreensão, que lidam com diferentes tipos de
sementes, levando em consideração, segundo a UNDCP, que a apreensão corresponde
a 15 vezes menos que a produção mundial da erva:
Erva
apreendida (tons.) |
Erva
produzida (tons) |
Área
agricultável (1.000 ha) |
|
Mundo,
1998 |
2.926 |
30.000 |
1.850 |
Brasil,
1998 |
28 |
287 |
4,592 |
Fonte:
UNDCP, report 2000[2]
Se associarmos esses dados
aos dados da Polícia Federal, referente aos anos de 1998‑2000, teríamos
uma projeção do tamanho da produção no Brasil. Isso corresponderia ao seguinte:
Ano |
Erva
apreendida (tons). |
Erva
produzida (tons) |
Área
agricultável (ha) |
1998 |
28 |
287 |
4.592 |
1999 |
69 |
707 |
11.312 |
2000
(1) |
51 |
522 |
8.364 |
Fonte: Relatório da Polícia Federal de aprensão de
drogas, UNDCP-report, 2000.
(1)
A apreensão da erva da cannabis, em 2000, foi de 161 tons, porém, segundo a PF,
110 tons. foram traficadas a partir do Paraguai, via Mato Grosso do Sul.
Esses dados mostram que a
atividade do plantio de maconha corresponderia a um uso de pequenas
propriedades rurais. Não há indícios de latifúndios produtores de maconha. Há
que se considerar que as maiores apreensões da erva não ocorrem na área de
produção, mas nos centros de distribuição. Assim, desconsiderando as 110
toneladas vindas do Paraguai, a maior apreensão foi no estado do Rio de Janeiro
(15 toneladas), seguido de MG (4), PR (3) e dos estados de SP, SC, RS, BA e PE
(todos com 2 tons. cada um). Se considerarmos as regiões, temos que o Sudeste e
o Sul tiveram as maiores apreensões, totalizando 28 tons. No Nordeste,
considerando BA e PE, permaneceu pouco mais que 4 tons. O NE não é um centro de
grande consumo, mas, seguramente, é um centro de produção.
Se considerarmos como
indicadores de produção local as apreensões de pés de maconha, levando em conta
que, conforme a Polícia Federal, cada pé de maconha produz, em média, 400
gramas de erva de cannabis, teremos para Bahia e Pernambuco, no ano de 2000:
Pés de maconha erradicados na BA e PE |
Quantidade de maconha
potencial |
1.813.483
pés |
725,39
tons. |
Fonte: Plano Nacional de Segurança Pública, Balanço
consolidado de destaques, 2002.
Podemos notar que a
quantidade de maconha potencialmente destruída é maior que aquela que foi
apreendida. Isso configura que a produção é muito superior que a apreensão e a
destruição (erradicação) conjuntamente consideradas. Tendo em vista que o
consumo permanece, isso implica numa produção superior a essas informações. Se
aplicássemos os mesmos fatores relativos à relação erva
apreendida-produção-área agricultável, teríamos o seguinte resultado para os
estados de Bahia e Pernambuco:
Toneladas de maconha a
partir dos pés de maconha destruídos |
Produção de cannabis |
Área agricultável |
725,39 tons. |
7.435 tons. |
118.963 ha. |
Fonte: Plano Nacional de
Segurança Pública, Balanço consolidado de destaques, 2002.
Apenas comparativamente
houve, em 1998, 134 mil ha de terras em conflito social agrário (Cf. CPT,
1999). Esses conflitos envolveram médias e grandes propriedades, especialmente
na Bahia. Como as áreas de produção da cannabis são, geralmente, precisam permanecer
ocultas, é ainda mais justificável a afirmação dessas terras se constituírem de
pequenas propriedades rurais. Um outro elemento importante, a eliminação de pés
de maconha no estado de Pernambuco foi menor que no estado da Bahia, 789.931
pés e 1.014.552 pés respectivamente. Isso pode indicar um crescimento dessa
atividade no estado baiano, mostrando, possivelmente, uma maior extensão da
rede do, assim chamado, Polígono da Maconha. Vale notar, ainda, que tanto a
estimativa de 118 mil ha. quanto a de 2.524 ha. não são incompatíveis com os
níveis de apreensão e pés de maconha destruídos. Não temos nenhum instrumento
de auferição precisa da extensão de terra utilizada para o plantio de maconha.
Considerando, porém, os dados de extensão do território e dados outros, como
por exemplo o dos hectares de terra envolvidos em conflitos agrários, não
parece incoerente supor a maior extensão estimada. Ao contrário, corresponde
aos dados de apreensão e de consumo estimado pelos órgãos policiais
internacionais, os principais produtores de informações nesse caso.
Os
números são muito elevados, corresponderiam, apenas no caso dos estados da
Bahia e Pernambuco, a partir dos dados dos pés de maconha extirpados,
implicaria na possibilidade da produção de 185 bilhões de cigarros de maconha
(cada cigarro teria, em média, 4g., aliás, o dado obtido ). Se essa informação
já é alta, imaginemos, com a aplicação daqueles fatores, a possibilidade de 1
trilhão de cigarros. Se de 1 trilhão retirarmos aqueles 185 bilhões, restariam
ainda 915 bilhões de cigarros para serem vendidos ao consumidor final,
descontados, obviamente, outras perdas no processo de produção dos cigarros.
Tudo considerado, os lucros possíveis com esse negócio são de cifras muito
altas para qualquer economia.
É interessante notar que,
assim como a visibilidade da violência cresce na segunda metade da década de
1980 em todo o País, a produção da maconha, no Nordeste, cresce também. Em
segundo lugar, esse crescimento não era desconhecido pelas autoridades públicas
constituídas. Em terceiro lugar, esse crescimento se dá, também, fortalecido
pelo famoso escândalo da mandioca, e pela queda dos preços da cebola e do
algodão na região. Não é possível interpretar o narcoplantio da maconha sem
associa‑lo ao Capitalismo agrário brasileiro. O empresário do plantio da
maconha, fornecedor de sementes, pesquisador agrônomo de semente, e, sobretudo,
o planejador da rede de produção‑distribuição‑consumo, é quem
realmente se beneficia e enriquece desse processo de narcoplantio. Chego a
cogitar da necessidade de discutir uma política de tolerância nas pontas do
processo do narconegócio, a saber, na produção e no consumo. Se o consumidor
merece respeito porque, eventualmente, se tornará um adito pelo abuso do uso
das drogas, o trabalhador rural merece respeito porque ele está numa atividade
agrícola, produtiva, construindo estratégias de sobrevivência num País que
desconsidera a necessidade de políticas agrícolas que beneficiem os camponeses,
especialmente os pequenos produtores e a agricultura familiar. Não é possível
discutir erradicação do plantio sem a co‑relata discussão sobre
desenvolvimento alternativo para o campesinato.
A UNDCP sustenta a
necessidade de tratar o assunto das drogas a partir de um tripé. Primeiramente,
ações preventivas, tanto na área educacional como na área terapêutica. Em
segundo lugar, políticos de reforço dos instrumentos legais e erradicação. Em
terceiro lugar, ações de desenvolvimento alternativo. Aliás, desde os anos de
1970, a UNDCP e a ONU tem protocolos, assinados pelos governos, entre os quais
o Brasil, que garante políticas de substituição de plantio para a construção de
alternativas para o campesinato. De fato, apenas na década de 1990 essas
políticas começaram a ser implementadas na América do Sul, sobretudo na
Colômbia. Antes da perversa face da ação intervencionista do Plano Colômbia, o
Estado Colombiano investiu em alguns projetos de substituição de plantio,
dentre os quais alguns entre os povos indígenas, que tiveram um resultado
adequado. Os camponeses abandonaram o plantio da folha de coca na medida em que
tinham segurança agrícola e alimentar construída. Porém, isso, como também fala
o sociólogo Ricardo Vargas Meza, precisa ser acompanhamento de políticas que
descriminalizem o já tão penalizado camponês (Ver Meza: 1999).
II
Os pequenos produtores, a
agricultura familiar, que se vêem entrelaçados ao plantio da cannabis,
especialmente no Nordeste brasileiro, porém, como indica o Instituto Brasileiro
Giovanni Falcone, plantio que está se expandindo para o Sul e o Sudeste, ao
menos a partir de 1998, estão inscritos nos processos da agroindústria. O
narconegócio do plantio é agroindústria. Essa é uma argumentação que já está
apresentada pela professora Ana Maria Motta Ribeiro (Cf.: Motta Ribeiro &
Iulianelli: 2000). A partir da geopolítica do narconegócio ela observa que há
uma divisão internacional do trabalho entre países produtores e consumidores.
Assim, na maioria dos casos, os países do Primeiro Mundo apresentam uma demanda
de consumo que permite uma produção de larga escala das drogas ilícitas,
sobretudo, no Terceiro Mundo. O uso abusivo de drogas, como também nos revela o
relatório da UNDCP, é muito maior nos países do Primeiro Mundo. As drogas
passam a legitimar uma guerra contra os países pobres. Se a justificativa
anterior era a luta contra o comunismo, passa agora a ser a luta contra as
drogas.
Essa não é uma prática
nova, em especial no caso do governo de Washington. Iniciou, ainda, durante os
anos de Nixon. Recém‑empossado, Richard Nixon declarou guerra às drogas.
Contínuas administrações mantiveram esse propósito, e isso toma mais força após
à queda do muro. Após o fatídico 11 de setembro de 2001, essa guerra
tornou‑se ainda mais extremada. Agora, associa‑se o mundo das
drogas cada vez mais às malhas do terrorismo internacional. Assim, o tratamento
governamental oferecido à questão das drogas é cada vez mais militarizado. As
discussões no âmbito da produção e da saúde, ambos sob a égide de legalizações,
ficam relegadas ao esquecimento, ou a um tratamento irrelevante.
Como descreve a professora
Ana Maria, o agronegócio é uma organização da produção agrícola a partir dos
interesses do empresário do negócio. Ele controla toda a cadeia produtiva.
Permite que alguns pequenos produtores sejam integrados, que outros sejam
assalariados, fornece-lhes todo o insumo agrícola, garante o beneficiamento,
distribuição e comercialização dos produtos, auferindo altos lucros. Nessa
organização em dois tempos, da porteira para dentro – garantindo por meio dos
insumos a qualidade do produto e subordinando o produtor à lógica do
empreendimento – e da porteira para fora – garantindo o processo de
distribuição e comercialização como etapas altamente lucrativas, o agronegócio
se expande em esferas macroregionais e internacionais, para as quais o pequeno
produtor, o assalariado rural, jamais teria condições.
A professora Ana Maria
demonstrou isso para o caso da cocaína. Não é difícil fazer o mesmo para a
produção da cannabis.
Aparte os perigos da
ilegalidade, o narcotráfico apresenta‑se como um bom negócio em termos de
trabalho agrícola para o pequeno produtor: no circuito do narco, terrenos
péssimos podem se transformar em aproveitáveis como montanhas e florestas –
acrescentaria eu, e sertões em processo de desertificação – que se tornam
lugares estratégicos. Os negociantes das drogas, diferentemente dos governos ou
proprietários de terras fornecem gratuitamente as sementes para as lavouras
“ilícitas” e apanham a colheita permitindo assim a produção de uma lavoura
lucrativa sem o trabalhador jamais sair da terra, reduzindo parte da
autoexploração a que geralmente se expõe o pequeno produtor, além da eliminação
de despesas consideráveis de transporte e dos riscos de perda de qualidade da
mercadoria. Acrescente‑se ausência de políticas agrícola e agrária para a
pequena produção, salários mínimos irracionais, o desemprego estrutural e mais
o processo de contrareforma agrária da América Latina, em curso desde a década
de 1970. (Motta Ribeiro & Iulianelli: 2000, 53).
Um dos efeitos do
agronegócio na América Latina, como nota o professor Miguel Teubal, é a
crescente desarticulação social e setorial da economia, tornando mais aguda a
questão do desemprego nas zonas rurais (Teubal: 1995, 104). Além disso, essa
reestrutração da absorção dos produtores na agroindústria tem provocado
desarticulação social. O agronegócio é um fator inibidor da construção de ações
sociais de resistência. É a produção de uma situação de ajuste. Diante da
ausência de alternativas no mundo camponês, dada presenças como as do
agronegócio e do agronegócio do ilícito, restam aos camponeses a sina da
integração, do ajuste. Parece que exportação ou morte é mesmo um mote, mas não
disjuntivo, é exportação e morte de um campesinato responsável absoluto pelo
abastecimento interno em países como o Brasil.
III
Nos anos de 1970, acreditava‑se que circulava no
Brasil maconha de origem mexicana. Ela teria vindo juntamente com o tráfico de
cocaína. À época se instalara com um certo ar de modismo juvenil, de rebeldia,
de atitude antiautoritária. O uso abusivo se disseminava, sobretudo, entre os jovens.
O resultado era um aumento relativo do número de aditos, e o conseqüente
aumento da produção nativa. Na segunda metade da década de 1980, o Polígono da
Maconha se tornara a área de mais alta produtividade nacional da maconha – bem
como o Maranhão. Não obstante, havia a entrada consecutiva de maconha no País,
sobretudo do Paraguai.
Resta apenas ao pesquisador a tarefa de deduzir o
seguinte. Primeiramente, a produção em larga escala apenas aumenta a partir de
1970, e sobretudo na segunda metade dos anos de 1980. É conseqüente esse
aumento de produção ao aumento de consumo. Acompanha essa onda produtiva uma
articulação de redes de distribuição inter‑regionais e internacional.
Essas redes de distribuição estão organizadas a partir da ilicitude do comércio
das drogas. Não é possível a existência de uma rede como essa sem uma estrutura
administrativa e de planejamento que promova um serviço de insumos para a
produção, proteção para a rede ilícita de distribuição e garantia de
atendimento à demanda de consumo. Assim, afigura‑se que desde o início, a
partir dos anos de 1970, essa rede teria que estar organizada nacional e
internacionalmente.
A uma rede econômica, como essa, corresponderá uma
rede de poder. O poder do ilícito se impõe, sobretudo, nos meios urbanos, com o
desenho da violência armada. Sobre esse ponto, muito contribui a reflexão do
professor Argemiro Procópio (Procópio: 1996, 155ss). Ele indica como o
narconegócio, sobretudo a partir da Amazônia, corresponde a um processo de
integração regional, no qual narconegociantes do Peru, Colômbia, Bolívia e
Brasil fazem uma ação conjunta invejável. As drogas são transportadas,
sobretudo, em pequenas quantidades, garantindo perdas pequenas. Essa rede,
utiliza os vôos internacionais e, na região amazônica, o deslocamento
terrestre. Essa rede não se sustenta sem a presença maciça de armas.
Corresponde ao narconegócio um forte setor de segurança bélica, que implica em
baixas muito elevadas. Há, sem dúvida, uma relação causal entre o aumento de
mortes no interior do País e a interiorização da produção e do consumo das
drogas, entre as quais a maconha – a cidade de Floresta (PE), em 1997, era a
segunda cidade com a maior taxa de homicídios de jovens entre 15-24 anos no
Brasil. Hoje, naquela região do Submédio, o aumento dos homicídios tem migrado
de Floresta para Petrolândia, se mantendo no entorno da área de produção de
maconha.
Isso nos mostra a complexidade de um sistema das
drogas. No cotidiano, apenas ouvimos falar, assistimos, ou lemos sobre os
efeitos desse sistema. Aumento da produção de drogas, pessoas viciadas
(aditos), assassinatos em grande escala promovido pelo narcotráfico, prisões de
traficantes. Nada disso fala do essencial. Para que esse sistema funcione há
financistas do narconegócio. Esse é um negócio que faz circular 411 bilhões de
dólares por ano. É impossível que o sistema das drogas funcione sem um processo
muito bem articulado de lavagem de dinheiro. O conceito de lavagem de
dinheiro inclui tanto os sistemas de proteção e sigilo bancário, que permitem a
circulação de cifras inimagináveis sem nenhuma possibilidade de investigação
dos depositantes, bem como os esquemas de lassidão em legislações que protegem
os sonegadores e facilitam a remessa de capitais – como as famigeradas CC5.
Nesse sistema das drogas, muitos se tornam reféns, especialmente os usuários e
os produtores e trabalhadores rurais.
IV
Uma questão fundamental que
se apresenta é a relação do Estado com a Sociedade nesse mister. Os camponeses,
como vimos na primeira seção desse capítulo, são cada vez mais objeto de uma
ausência de política pública. Chegamos à profecias autorealizáveis, como as do
senhor Ministro do Planejamento, Pedro Malan, que afirma que em 2013 apenas 5%
da população estará vivendo no campo. E, com isso, justificaria a diminunição
dos investimentos públicos em favor dos pequenos produtores. Adicione‑se
a isso o fato de todas as ações governamentais em vista do narconegócio terem
sido de caráter militar e policial. Não acompanharam, à maioria das ações,
ações educativas, de saúde e de efeito econômico. Ou, ainda, mesmo agora que
iniciam a ocorrer, tiveram como finalidade a diminuição imediata da produção,
ou a inibição da circulação dos produtos.
Daí a ênfase na erradicação de pés de maconha e de
apreensão de drogas. O sucesso da política anti‑drogas cresceria na
medida em que crescesse as quantidades destruídas e apreendidas. O resultado
disso é a punição indistinta ao pequeno produtor e ao traficante e a atenuação
para o usuário. O usuário vítima do uso abusivo, se torna um adito, uma pessoa
viciada, um usuário compulsivo. O produtor? Ele não é alguém que se torna adito
da produção por motivos econômicos? Não é ele alguém que é refém da ausência de
políticas agrícolas e agrárias?
Como indica, muito bem, o professor Paulo Fraga:
Assim, é de extrema
relevância entender que o incremento da violência no Brasil, e em várias partes
do mundo, possui uma estreita ligação com a organização do crime. Nesse
sentido, novas abordagens se fazem necessária para compreender o fenômeno,
articulando a sua face macro com seus efeitos micro. Se o crime se organiza em
rede e vai criando um rastro de violência por onde passa, seus efeitos mais
cruéis, contudo, se dão em sua faceta local. Assim, é imprescindível que para
cada realidade local onde se verifica os efeito do narconegócio seja
identificado os atores e os elementos internos que propiciam sua
institucionalização, seja de natureza cultural ou social. Isto é, não se pode
fazer uma análise aprofundada do crime, principalmente o organizado, suas
causas e seus afeitos, sem compreender
toda a sua estrutura global e nacional, as desigualdades sociais que produzem
determinadas carências, mas analisar elementos culturais das relações dos
sujeitos com as estruturas que propiciam a adesão de pessoas ao crime. O caso
das favelas do Rio de Janeiro e das áreas rurais do Submédio São Francisco são
exemplos de como os efeitos da criminalidade organizada em torno do tráfico
ilegal de drogas atingem principalmente os atores sociais mais vulneráveis, no
caso, específico os jovens. (Fraga & Iulianelli: 2002, 4).
V
Itaparica foi construída no local da Cachoeira de
Itaparica. Foi construído em 1988, um reservatório de 150km de comprimento,
alagando 834km2 de terras. Aproximadamente 10 mil e quinhentas
famílias foram deslocadas, 45 mil pessoas, de sete municípios dos estados da
Bahia e Pernambuco. Por meio de muitas lutas, entre 1979 e 1986, o Pólo
Sindical conquistou um acordo inédito para a população atingida pela construção
de barragens. Por meio do Acordo de 1986 foi conquistado: terra para
irrigação, casa de moradia (agrovilas), terra para criatório, assistência
técnica, verba de manutenção temporária (no valor de 2,5 salários mínimos) por
família reassentada, indenização e a participação dos trabalhadores em decisões
sobre o reassentamento. Pelo governo federal assinava o acordo a CHESF. Pelos
trabalhadores assinava o Pólo Sindical.
Os trabalhadores, vitoriosos na luta, indicavam as
áreas nas quais deveriam ser reassentados. A partir de 1987, num processo
acelerado pela CHESF, os trabalhadores rurais e suas famílias, quase sete mil,
iniciaram a ser reassentados. As agrovilas tinham sido construídas, mas ainda
não estava pronta a infra‑estrutura para irrigação da maioria dos
projetos. O Banco Mundial financiou 232 milhões de dólares para a efetivação
dos acordos que garantiriam as mesmas ou melhores condições sociais que as
anteriores para os trabalhadores rurais – estes, além disso, por meio dessa
luta, conquistaram a inclusão da cláusula social nos acordos de financiamento
de Barragens com empréstimos do Banco Mundial.
Até 1997 o governo federal, em sucessivas
administrações, gastara 1,3 bilhão de dólares com Itaparica. Segundo um Grupo
de Trabalho do próprio governo, Itaparica foi o maior investimento no interior
do Nordeste brasileiro. Até 1999, apenas 35% dos projetos de reassentamento
irrigado estvam em funcionamento. Mesmo com essa situação adversa, os
trabalhadores rurais de Itaparica foram responsáveis, em 1996, por 20% da
produção nacional de tomate – num acordo com a agroindústria Etti. O
Pólo Sindical permanece exigindo os direitos dos trabalhadores, conquistados há
mais de 16 anos, com promessas afirmadas pelo governo federal, secundadas pelo
Banco Mundial, e até hoje não cumpridas.
Toda essa história já seria trágica. Entretanto, há um
dado fundamental que ainda não foi acrescida nessa dinâmica. Quando em 1986 os
trabalhadores rurais elegeram áreas para o deslocamento, já era do conhecimento
do governo federal, com informações oferecidas, até mesmo, pelo DEA, que
aquela era uma região muito importante para a produção da maconha. Assim, o
maior investimento público no interior do Nordeste se deu na região da maior
produção de maconha. Isso alimentou um caldo de cultura da violência que já, à
época, possuía duas semânticas: a semântica tradicional e a semântica moderna.
Com essa estrutura interpretativa estamos construindo tipos ideais para
compreender comportamentos violentos no sertão.
Do lado tradicional, temos que a região do sertão é
cercada por uma história de ações violentas de resistência dos sertanejos,
diante dos desgovernos e das ausências de políticas públicas, e ações violentas
entre os sertanejos, marcadamente por questões de honra. Questões de
honra, no sertão, estão marcadas por pelejas interfamiliares com ou sem
envolvimento de questões agrárias. As ações violentas de resistência têm
características de reconstruções sociais ante situações de injustiça, tais
foram, por exemplo, o caso de Canudos, e do Cangaço, reconhecidamente uma
estratégia de banditismo social. No caso das ações violentas entre os
sertanejos temos as, assim chamadas, brigas de família. Nelas, muitas vezes, o
objetivo inicial da disputa se perde, e permanece apenas aquele ranço quase
inapagável e inapelável – atualmente se assiste no sertão de Pernambuco a
algumas tentativas de apaziguamento, ainda com efeitos pouco mensuráveis.
Do lado moderno, temos a violência do Capitalismo
agrário que aparece como uma estrutura de subordinamento do pequeno produtor,
do camponês. Mesmo aqui a complexidade do processo exige que façamos uma
distinção entre a violência provocado por ações ou omissões do Estado e aquela
provocada por ações de agentes ilegais. Especialmente esse último caso tem se
manifestado mais recentemente. Essas ações violentas provocadas pelo mundo do
crime se organiza a partir da construção das estruturas de insumo de produção
de narcoplanta e da construção de estratégias de distribuição dessa produção.
Essas duas semânticas se articulam. Temos com isso a
produção de uma violência fatal, que utiliza membros de famílias em litígio
como pistoleiros de aluguel. A vida humana passa a não valer coisa
alguma, na medida em que ela se oponha as ações violentas ou as ações
produtivas promovidas pelos agentes das ações violentas. O caso é ainda mais
complexo na medida em que admitimos serem tais fatos produtos de opções
estratégicas, ou, ao menos, acentuados por opções estratégicas governamentais.
Isso fica ainda mais evidente quando observamos que este não é um fenômeno
localizado, mas se apresenta em todo espaço que essas condições sociais se
manifestam. Senão, vejamos a descrição da situação no Marrocos e comparemos ao
que se passa no Submédio São Francisco. Falando dos anos de 1990, após
demonstrar que a cultura da cannabis é tradicional na região, que os camponeses
encontram nela uma cultura lucrativa, e que entendem que é um direito
trabalhar, afirma:
É necessário acrescentar que as políticas de ajuste
estrutural do Banco Mundial, das quais é a promotora, e que foram amplamente
implementadas pelo governo marroquino, tiveram conseqüências econômicas e
sociais muito graves para os pequenos produtores. Estes últimos precisaram
encontrar uma alternativa. Existe um paralelo entre a aplicação de políticas
neoliberais, o empobrecimento dos camponeses e o desenvolvimento da cultura da cannabis.
Assim, a região do Rif não é suficiente para a sobrevivência dos seus
habitantes, o kif (cannabis), que
pode ser cultivado com ou sem irrigação, aparece como uma instância de salvação
para uma população perdida. É uma cultura que lhes permite sobreviver, defender
a vida... E isto não apenas pela facilidade de sua cultura, mas pela massa de
mão‑de‑obra que drena, como constatamos em recentes pesquisas
(1995) (Ouazzani: 1996, 118)
A ação do Banco Mundial, conjuntamente a políticas
públicas de ajuste, numa região como o Rif, no Marrocos, marcada pela seca,
permitiu o crescimento do plantio da cannabis. E isso com uma absorção
de mão‑de‑obra muito grande, em cidades de 500 habitantes, de 100 a
150 pessoas estavam envolvidas com este plantio (Ouazzani: 1996,118). Não temos
esses dados sobre o Polígono da Maconha. Porém, de acordo com informações
divulgadas pelo Ministério Público, considerando apenas as cidades de
Pernambuco -- aquelas do Polígono da
Maconha reformatado (Belém do São Francisco, Cabrobó, Caraibeiras,
Carnaubeira da Penha, Floresta, Itacuruba, Lagoa Grande, Orocó, Petrolândia,
Santa Maria da Boa Vista, Tacaratu), existem 40 mil pessoas trabalhando no
plantio da maconha, sendo 10 mil adolescentes e jovens. A maior dessas cidades
tem uma população que não chega a 40 mil pessoas.
O fato é que as ações do Banco Mundial na região
parecem, como no Marrocos, ter deixado a população refém dessa estratégia de
sobrevivência. Senão, vejamos. O Pólo Sindical, em 1997, exigiu do Banco
Mundial que se fizesse presente por meio do Painel de Inspeção, averiguando
como não foi usado socialmente os recursos que tinham tal fim. O Banco, em
decisão apertada, decidiu por não instalar o Painel, mas se comprometeu acompanhar
as ações do governo federal para a conclusão do reassentamento. Em 1997,
fatidicamente, uma das mais expressivas lideranças sindicais locais, Fulgêncio
Manoel da Silva, é assassinado por se opor às pressões dos narcoprodutores para
que os agricultores que não estavam interessados cedessem suas terras para o
plantio de maconha.
Isso não sensibilizou nem ao governo federal, nem ao
Banco Mundial. Parlamentares haviam identificado, antes da morte de Fulgêncio,
que o Polígono da Maconha era uma área de produção afiliada a uma rede de
narconegócio, que parecia ter tentáculos estendidos até o Rio de Janeiro, com o
Comando Vermelho, que seria uma espécie de comando geral para os Comandos
Caipira. Até o ano de 1999, conforme se comprometera com o Banco Mundial, o
governo brasileiro não concluíra o reassentamento de Itaparica. Ao invés disso,
por meio do Grupo Executivo para o Reassentamento de Itaparica, construiu uma
alternativa interessante para trabalhadores rurais que tinham conquistado o
direito de ter terra irrigada para produzir: pagou indenizações para que esses
trabalhadores se retirassem das terras que conquistaram. Os valores pagos eram
suficientes para compras de imóveis residenciais nas cidades, mas não para a
aquisição de terras para a produção.
Entre 1997-1999 aumenta o índice de homicídios de
jovens na região do Submédio São Francisco. A cidade de Floresta permanece
tendo as mais altas taxas, embora Petrolândia esteja em fase de ascensão do
número de homicídos. Até o ano de 2001, foram indenizados quase 500 famílias, e
tituladas 620 famílias, restando das 6.900 famílias que foram reassentados
2.743 a receberem esses benefícios, conforme a CHESF. Em 2002, o
Orçamento da União prevê gastar mais de 121 milhões de reais com a conclusão do
reassentamento de Itaparica. Até o momento, 200 famílias do projeto Jusante, no
município de Glória, na Bahia, querem não esse benefício, mas o
reassentamento irrigado que conquistaram
em 1986. O problema maior é que, mesmo em áreas onde já se está produzindo,
sobretudo fruticultura, o GERPI está propondo esse benefício às famílias
reassentadas. Parece que falta aos tecnocratas do GERPI o mínimo de
sensibilidade para associar o benefício ao terror da ação violenta
moderna, estatal e criminosa, que está alimentando.
As ações policiais, para a erradicação da maconha, não
cessaram. Em 2000, foram destruídos 3,7 milhões de pés de cannabis. No
início de 2001, se verificava que havia novas áreas de plantio da erva em
Pernambuco, no município de Palmares, zona da mata sul pernambucana. Lá foram
encontrados dois mil pés de maconha. No ano de 2002, em março, numa ação
conjunta da Polícia Federal coma Polícia Civil de Pernambuco, em Belém do São
Francisco, foram erradicados 100 mil pés. Em julho, deste mesmo ano, em Orocó,
dentro do Projeto Brígida – um daqueles projetos de reassentamento irrigado,
num plantio consorciado de fruticultura e cannabis, se erradicaram o
correspondente a 22 toneladas de maconha. Em assim sendo, parece que a
erradicação não está se apresentando como uma política muito interessante, sem
políticas públicas complementares, e na contramão de políticas públicas que são
contra as conquistas dos trabalhadores rurais na região.
VI
Apenas para recordar e
reforçar, o plantio de drogas ilícitas é uma atividade produtiva camponesa. Sem
associar essa discussão ao vilipêndio dos direitos dos trabalhadores rurais no
Capitalismo, especialmente em se tratando dessa dívida social brasileira de
longa duração, torna-se incompreensível qualquer análise. A produção de drogas,
em si, não geraria violência. O que gera violência é a estrutura agrária, a
ausência de políticas públicas agrícola e agrária, a situação de subordinação
capitalista do campesinato. Ademais, é em função da repressão que há uma incidência
maior de violência, ao menos como a temos constatado na região do Submédio São
Francisco.
O arcabouço legal que lida com o tema da repressão ao
tráfico de drogas, especialmente a lei 6398/76, a lei 10.409/02 e a Política
Nacional Antidrogas tratam o trabalhador rural, quem cultiva ou semeia drogas
ilícitas, quem produz drogas ilícitas, como traficante, submetido à pena de
detenção – sendo três anos a mais severa sanção prevista em relação ao crime
hediondo do tráfico de drogas. Efetivamente, para a lei, o trabalhador
rural é um criminoso que faz parte da cadeia produtiva e comercial ilícita,
sendo, portanto responsabilizável perante a sociedade, o Estado, a Justiça.
O usuário, a outra ponta do processo produtivo
(planejamento(?)—gerenciamento (?)—
produção-distribuição-comercialização-consumo), recebe, após diversos apelos da
sociedade civil, um tratamento legal diferenciado. O usuário é, de fato ou
potencialmente, um dependente químico. Não obstante as críticas apresentadas
pelo Juiz Maierovitch, no artigo solidariedade autoritária (revista
Carta Capital), foi reconhecidamente um avanço na legislação, o que permitiu o
abrandamento da pena aos usuários (a justiça terapêutica), o tratamento
da adicção como um caso de saúde pública e a descriminalização do usuário.
Até o momento, nada foi feito para pensar a situação
do trabalhador rural plantador de drogas ilícitas:
Como é a estrutura organizativa do plantio de maconha?
Quem é esse plantador no Brasil?
Quantos são? Crianças e adolescentes trabalham
plantando drogas?
Qual a forma de recrutamento desse plantador?
Ele é o dono da propriedade na qual se planta droga
ilícita?
Qual o impacto sócio-econômico do plantio de droga
ilícita?
Qual a área agricultável, no Brasil, para o plantio de
drogas ilícitas?
Existe alguma outra política além daquela de erradicação
das áreas de plantio? Qual resultado apresenta?
Respondendo
rapidamente às questões:
·
Como é a
estrutura organizativa da área de plantio?
Há alguém, ou um grupo, que é o financista de todo o
processo (urbano e rural), a quem não se chega. Este é o responsável pelo
processo de planejamento e remanejamento de atividades. No plano local imediato
o que temos: um gerente, no caso do Submédio são os líderes das famílias
(Araquã e Benvindo em Belém do São Francisco; Novaes e Ferraz em Floresta),
estes têm relações de mando para com os seguranças, transportadores e
trabalhadores rurais, aqueles lhes devem obediência. Seguranças e
transportadores são pessoas armadas, que asseguram o processo de colheita, retirada
do produto e entrega aos postos de distribuição – principalmente nas capitais
do NE, mas também há abastecimento para RJ e SP.
·
Quem é
esse plantador no Brasil?
A atividade de plantio da cannabis ocupa,
sobretudo, pequenas propriedades. Os plantadores são pequenos proprietários e
assalariados, que se mantém na atividade do plantio quase exclusivamente. Ou
seja, trabalhador leva enxada, não leva arma. De fato, nas áreas de plantio, a
observação mostra que as armas permanecem nas mãos dos jovens e adultos
responsáveis pela segurança e pelo transporte. Ao plantador cabe o cuidado com
o cultivo e a eventual troca de lugar das mudas (que são plantadas mais em
sacos plásticos que diretamente no solo) para poder permitir a fuga e a manutenção
das plantas, quando das operações de erradicação – que, aliás, quando
realizadas pelas Polícia Federal em conjunto com as Polícias Civil e Militar
são amplamente divulgadas na imprensa antes da realização, o que, segundo
vários informantes, facilita a mudança e a fuga.
·
Quantos
são? Crianças e adolescentes trabalham plantando drogas?
Segundo as informações do MP de PE, apenas na região
do Submédio são 40 mil trabalhadores rurais envolvidos no plantio de drogas
ilícitas, entre estes estão 10 mil crianças e adolescentes. Um dos elementos
que explica esse grande número é o retorno econômico. A diária de um
trabalhador rural na colheita da cebola, por exemplo, é em torno de R$ 7,00;
para o plantio da cannabis é de R$ 50,00. Esta vantagem econômica torna o risco
de ser preso menor. Uma outra explicação para o grande número de envolvidos é a
auto-explicação para a atividade: o trabalhador envolvido afirma que a
atividade de plantio da maconha é trabalho como qualquer outro trabalho
agrícola. Aliás, os companheiros do entorno confirmam: o plantador é do “bem”,
os do “mal” são os que organizam a segurança e a distribuição, os que matam.
Porém, quando o trabalhador é preso ele é “homilhado”, diante de si, da família
e da comunidade ele é criminoso. O crime é constituído pela detenção, não pelo
ato de plantar. Esta distinção, aparentemente simples, é o que explicaria,
também, este grande número de trabalhadores envolvidos. Isto porque os
trabalhadores rurais são, em geral, moralistas‑legalistas. Para eles, o
envolvimento com o crime desqualifica a pessoa. Isso, de certa maneira, como
que confirma o discurso dos que estão envolvidos diretamente com o plantio de
drogas.
·
Qual a
forma de recrutamento desse plantador?
Na região do Submédio, as entrevistas com pessoas que
já estiveram plantando maconha e com trabalhadores rurais, autoridades
eclesiásticas e parlamentares nos fez perceber pelo menos duas formas de
aliciamento. A primeira delas, e a minha impressão é que seja a mais comum, é
pela via amistosa. Os gerentes se achegam amistosamente porque são pessoas da
própria região, alguns seguranças vêm de outras áreas. O fato é que sempre
existem pessoas de outras áreas do País onde existe área de plantio. Isso
mostra uma conexão entre o plantio e a distribuição em grandes capitais
nordestinas e no SE e S do País. Os plantadores, que ingressam nessa
modalidade, podem sair quando desejam. De fato, entrevistamos trabalhadores
rurais que informaram ter plantado cannabis e ter deixado de plantar sem sofrer
ameaças.
Uma outra modalidade é pela coação, o assassinato de
Fulgêncio se deu porque ele denunciou que havia um grupo exigindo que
trabalhadores rurais plantassem maconha para ele. Esta coação é pela
demonstração de força do grupo que gerencia o processo. Eles colocam os seus
seguranças em condição de usar letalmente a força. Durante a campanha de 1996,
em Santa Maria da Boa Vista, durante os comícios do deputado Fernando Ferro na
região, houve várias demonstrações de força do grupo dos narcoplantadores para
demonstrar que “ali quem manda são eles”.
·
Ele é o
dono da propriedade na qual se planta droga ilícita?
Como foi falado anteriormente, na maior parte dos
casos o trabalhador rural é um assalariado. O dono da terra, em geral um
pequeno produtor, sabe do uso da propriedade para um fim ilícito. Porém, se ele
estiver ausente e manifestar-se negando conhecimento, tem o direito de
permanecer com a posse da terra. Até mesmo, ele pode indicar que foi ameaçado
para abandonar a propriedade.
·
Qual o
impacto sócio-econômico do plantio de droga ilícita?
O impacto social mais evidente é a elevação dos níveis
de violência. Durante o período de plantio, nas estradas, se mantém o clima de
violência para diminuir a intensidade no uso das rotas do tráfico. Durante o
período da repressão e erradicação das áreas de plantio há uma migração do
crime, levando os seguranças, transportadores e gerentes a outras atividades
criminosas que não o plantio e o transporte do produto. Assim, aumentam os
crimes contra as pessoas e o patrimônio. Este é um dos fatores que torna a
cidade de Floresta a portadora de um das mais altas taxas de morte por causa
externa de jovens de 15-24 anos, 175/100 mil habitantes.
·
Qual a
área agricultável, no Brasil, para o plantio de drogas ilícitas?
Não sabemos ao certo. Podemos especular sobre o tema.
Proponho que para BA e PE devamos considerar uma área agricultável de 118 mil
ha. Isto é compatível com a quantidade de trabalhadores envolvidos e com os
conflitos sociais agrários na região.
·
Existe
alguma outra política além daquela de erradicação das áreas de plantio?
Quais resultados apresenta?
Sim, na Operação Mandacaru se procurou enfatizar
outras políticas como crédito especial para o pequeno produtor, desapropriação
de propriedades para Reforma Agrária, Inteligência Fiscal... Os resultados são
desconhecidos e a Polícia Federal diz que os recursos utilizados foram muito
maiores que os de suas Operações com resultados iguais e piores.
O caso é de se perguntar: o que fazer? Que outras
propostas encaminhar? Aceitar a política da “guerra contra as drogas”?
Algum tipo de política de
redução de danos de destruição da vida dos camponeses envolvidos nesta produção
deve ser apresentada, senão o que teremos será a destruição de mais vidas em
nome uma atividade que tem alguém ganhando, e muito, com isso.
VII
As pesquisas que temos
desenvolvido na região do Submédio São Francisco[3] nos oferecem um
retrato da situação dos jovens envolvidos com plantio de drogas ilícitas. Torno
a repetir que esta é uma informação qualitativa, talvez aplicável a algumas
situações concretas apenas. Entrementes, a comparação do envolvimento de
crianças e adolescentes no plantio mostra que há muitas correlações entre essas
observações e a situação em geral das crianças e jovens camponeses que
trabalham na agricultura familiar. Ainda introdutoriamente recordo que é no
marco geral da violação dos direitos dos camponeses pelo capitalismo agrário
brasileiro, e em particular, em função da exploração irracional da mão‑de‑obra
infanto‑juvenil que podemos dar continuidade a essas reflexões.
Uma observação preliminar
que se impõe é sobre o trabalho infanto‑juvenil na agricultura familiar.
O tema da erradicação do trabalho infantil é uma conquista muito grande da
sociedade civil para toda a Humanidade. Entretanto, é muito oportuno lembrar
que o trabalho infantil a ser erradicado é aquele considerado perigoso para o
desenvolvimento da pessoa humana na sua integralidade. Em assim sendo, aquele
trabalho que é elemento de socialização, construtor de uma sociabilidade
integradora, e que respeita as diferentes etapas do desenvolvimento humano, que
não usurpa a infância, mas que lhe assegura os melhores meios de
desenvolvimento, este trabalho não pode nem deve ser considerado, e nem é
perigoso. Sem querer entrar em polêmica, peço que, por hipótese heurística,
aceitemos que o trabalho infantil e juvenil na pequena agricultura familiar não
é perigoso.
Uma segunda observação
preliminar que se impõe é relacionada ao plantio de drogas ilícitas. Segundo
informações divulgadas pelo Ministério Público, são 10 mil crianças e jovens
envolvidas neste plantio. Apenas esta informação já tornaria extremamente
importante um levantamento mais detalhado da situação. A necessidade desse
empreendimento investigativo está diretamente relacionada à construção de
políticas públicas que pretendam, efetivamente, assegurar a essas crianças e
jovens direitos que lhe são roubados por um envolvimento numa atividade ilícita
que tem, como principal pressão de ingresso, o fator sócio-econômico.
Podemos afirmar a existência
de três correntes formadoras de sociabilidade infanto‑juvenil a partir do
plantio de drogas ilícitas, segundo as observações que colhemos na região.
Essas seriam: primeira, sociabilidade do trabalho; em segundo lugar,
sociabilidade da violência; em terceiro lugar, sociabilidade da resistência (ao
envolvimento no plantio de drogas ilícitas). Essa tipologia apenas é
ilustrativa da situação que encontramos na região, precisamos sempre recordar a
observação metodológica weberiana, tipos ideais refletem a realidade, mas não
são jamais encontrados em sua forma pura na realidade. Em assim sendo, ao
propormos estes tipos de sociabilidade apenas estamos registrando dimensões da
socialização que ocorre em função do plantio de drogas ilícitas. Não se trata,
pois, de uma discussão geral sobre socialização e sociabilidade, mas da
discussão sobre a sociabilidade que se afirma a partir de uma situação
concreta.
Como foi argumentado ao
longo do texto, é no conjunto das relações da pequena agricultura familiar que
se inscreve o plantio de cannabis, ao menos no Submédio São Francisco.
Na agricultura familiar a participação das crianças e jovens na atividade
produtiva é um elemento constante. Esta dinâmica corresponde à construção da
socialização fundamental de crianças e jovens na família e na comunidade. No
plantio de cannabis, em geral, ao menos nas observações que temos, as
crianças e jovens vão com os pais para o cultivo e colheita. Na maioria dos
casos, são meninos, maiores de oito anos. Não temos registros de meninas.[4]
Há, porém, um outro
ingrediente que se associa a essa dimensão tradicional do trabalho. Trata‑se
da compulsão ao consumo. O registro que temos é que os jovens se
integram à atividade de plantio com o fito de obter dinheiro para comprar tênis
e roupa “de marca”, poder sair com mulheres, para namoro e intercurso sexual, e
ter recursos para comprar uma “moto”. Essas ambições são, também, fruto da
exposição aos meios de comunicação social. Essa informação é, sobretudo, valorizada
por informantes privilegiados, como o Bispo de Floresta, por exemplo. Essa é
uma situação semelhante à dos jovens nas áreas urbanas. Como ficou claro numa
exposição feita no Museu da República, no Rio de Janeiro, na qual, numa redoma
encontrava-se um tênis Nike e noutra uma metralhadora AR-15, sem nenhuma
explicação adicional, mas de fácil poder simbólico associativo.
Segundo as informações que
colhemos, pelos próprios jovens, a principal via de arregimentação da mão‑de‑obra
para o plantio de drogas é amistosa. Isso porque são amigos, parentes ou
“conhecidos” os que arregimentam. Evidentemente, a fase do plantio e colheita,
fase produtiva, é atividade laboral. Os jovens que ingressam, em geral,
ingressam com os pais ou familiares, tios ou primos mais velhos por exemplo. No
caso da inexistência de coação, a atividade laboral é maior no período da
colheita e prensagem – em alguns casos ela é realizada na própria área de
plantio. Isso não quer dizer que não existam jovens cumprindo com a atividade
de segurança, e, por conseguinte, armados. Porém, há uma clara distinção entre
os jovens que estão na atividade de plantio e os que estão na área de
segurança, sobretudo pelo uso de armas e pela procedência dos últimos. Todos,
porém, pertencem à mesma classe social.
Os contratantes são
“agentes invisíveis”. Os gerentes arregimentam localmente os trabalhadores,
lhes pagam, mas aqueles que são os provedores dos recursos são desconhecidos. O
fato desses jovens trabalharem numa atividade produtiva que é lucrativa permite
haver maior circulação de recursos em atividades de entretenimento, tais como
bares, bailes e “bregas” – prostíbulos. Esses, porém, não são os principais
recursos e há uma certa atividade financeira nas cidades do Submédio que não
corresponde à principal atividade produtiva que é a fruticultura e a
agricultura de subsistência. Tais não são os recursos provenientes dos ganhos
dos trabalhadores rurais, e das crianças e jovens camponesas, envolvidos no
plantio de drogas ilícitas.
Podemos concluir que a sociabilidade
do trabalho no plantio de drogas ilícitas tem, em semelhança com a socialização
pelo trabalho na agricultura familiar, o caráter de ser uma atividade masculina
e não coercitiva. Porém, diferente dela, pelo caráter lucrativo que apresenta,
permite aos jovens, sobretudo, ambições e desejos e a compulsão capitalista
para o consumo, com graus de satisfação relativos, maiores que a satisfação
daqueles que estão envolvidos com atividades laborais lícitas na mesma região.
Uma última palavra sobre essa sociabilidade do trabalho, não há, conforme
observamos até o momento, castigo ou punição para aqueles que simplesmente
deixam de participar daquela atividade laboral do plantio, colheita e prensagem
de cannabis. Entretanto, não podemos deixar de observar, como feito
acima, que há também contratação por meio de constrangimento e recurso da
violência física – apenas não temos registro que este seja o principal caso,
embora tenhamos o registro da letalidade disso, tal foi o assassinato de
Fulgêncio, que denunciava a pressão feita por narcotraficantes para que
camponeses deixassem o plantio lícito e ingressassem no ilícito.
Sobre a sociabilidade da violência temos que advertir
que não é a principal questão em relação ao trabalho produtivo em si. Como foi
observado acima, também se impõe a distinção das duas semânticas, aquela da
violência tradicional e moderna. Nesse caso específico, do envolvimento infanto‑juvenil
com o plantio de dorgas ilícitas temos que observar, uma vez mais, que criança
e jovem em atividade laboral não anda armada. Aqui temos três situações para os
que estão no plantio, colheita e prensagem do ilícito. Na primeira, eles são
vítimas da violência moderna, sobretudo da ação repressora do Estado, que
quando não os elimina fisicamente, como faz em alguns casos de confronto com os
seguranças – sendo os trabalhadores rurais “baixas insignificantes”, os detêm e
submete às sanções do Estatuto da Criança e Adolescente.
No caso de serem detidos e submetidos às sanções do
ECA, são retirados de suas regiões de origem. Perdem o contato com os
familiares e a atividade agrícola, são desaculturados e deslocados
compulsoriamente. Esta é uma violência cultural que não é discutida. Depois
ficamos apenas reformulando os nossos indicadores sociais sobre a evasão do
homem do campo.
Na segunda, são vítimas da violência tradicional. O
processo de repressão ao plantio, a erradicação, implica em aumento dos
crimes contra pessoas e patrimônio no momento seguinte. Isso é um dos fatores
de elevação da taxa de mortes de causa externa de jovens de 15-24 anos na
região. Assim, esses jovens, antes ativos, são eliminados – os que estavam no
plantio, colheita e prensagem de cannabis e outros. Uma hipótese para
este fato é que, para manter, de um lado taxas de lucro relativas, e de outro,
para chamar a atenção para outras atividades ilícitas, liberando a atenção
referente ao plantio, passam a ser estimulados por quem lucra com o efeito
dessas ações, esse novo modelo de ação. O grau de letalidade, neste caso, não
parece ser considerado. Porém, repito a primeira afirmação: isso está
relacionado à ação policial de erradicação. Para esta atividade cumpre um papel
importante, naquela região, a violência tradicional ali instalada.
Isso gera a terceira dimensão da sociabilidade da
violência, é que os jovens são, também, em muitos casos, os atores da
violência. Isso porque, como o ECA lhes atribui uma imputabililidade distinta
daquela do adulto, mas também os qualifica como agentes do crime – são infratores,
lhes torna um agente privilegiado, para os “comandos” de ações como homicído.
Isso explica porque o assassino de Fulgêncio, à época, era um jovem de 17 anos.
Toda essa sociabilidade da violência, como a situação
do plantio de drogas ilícitas, somente pode ser compreendida com uma certa
anuência dos aparelhos de repressão. Não há nenhum levantamento sobre os níveis
de corrupção. Porém, há várias conversas locais que dizem que políticos da
região pagam advogados para liberar narcotraficantes da prisão, há denúncias do
uso de ambulâncias da CODEVASF para o transporte de maconha para Recife, etc.
Essa sociabilidade da violência é, também, uma decorrência da ausência do
Estado de Direito naquela região.
Finalmente, podemos falar de uma sociabilidade de
resistência. Há uma série de atores sociais locais e regionais, entre os quais
o Pólo Sindical do Submédio São Francisco e a Igreja Católica, sobretudo com as
Pastorais de Juventude e Pastoral dos Reassentados[5], que tem desenvolvido atividades sócio-pedagógicas no
intuito de construir projetos de desenvolvimento rural sustentável para a
região. Com essa intenção, tendo em vista que, sendo ilícita, a atividade do
plantio de drogas corrobora e provoca, de um lado, violência tradicional e, de
outro, violência moderna, tendo efeitos perversos para os camponeses em geral e
para a juventude em particular, esses atores sociais têm construído ações de
socialização e formação de uma sociabilidade de resistência.
Apenas para resumir, podemos afirmar que, não obstante
as devidas diferenças, tanto o Pólo quanto as pastorais procuram promover três
elementos de sociabilidade infanto-juvenil. Primeiramente, a afirmação da
identidade rural de crianças e jovens. As atividades desenvolvidas por esses
atores procuram desenvolver a auto-estima camponesa, por meio de ações lúdico‑pedagógicas
e sócio‑educativas. Em segundo lugar, buscam afirmar a possibilidade da
participação juvenil na construção do desenvolvimento sustentável da região,
sobretudo com um princípio metodológico conhecido por protagonismo juvenil.
Esse princípio se afirma como a atuação juvenil no ato de planejar, realizar,
avaliar e se apropriar dos resultados das atividades construídas. Por fim, em
terceiro lugar, buscam construir alternativas concretas de geração de emprego e
renda para jovens agricultores daquela região do Semi-árido brasileiro.
Certamente, podemos admitir que essas ações poderiam
se inscrever sem ter que estar relacionada ao plantio de drogas ilícitas.
Porém, considerando a existência do plantio e da violência, sobretudo aquela
violência moderna, em especial aquela que termina sendo promovida pelo Estado,
essas ações se inscrevem na direção do pleito por políticas públicas que
beneficiem os camponeses, sobretudo os camponeses jovens, ao invés de ser mais
uma arma letal contra eles. Isso é evidente em atividades como a Educação para
a Paz, desenvolvida pela Diocese de Floresta e a Gincana “Luta pela Paz”,
assessorada por KOINONIA, e desenvolvida pelo Departamento de Jovens do Pólo
Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco.
Para concluir essas reflexões, a partir de tudo o que
foi expresso, a título de sugestão para maior aprofundamento, apresento um
elenco de políticas públicas para reduzir os danos que o plantio de drogas
ilícitas oferece para os trabalhadores rurais, em geral, e as crianças e jovens
camponeses, em particular:
No limite, o reforço a ações meramente repressivas é
absolutamente ineficaz. A continuação da política de erradicação de plantio não
traz nenhum sinal positivo. Concluímos essas reflexões com algumas das
propostas do professor Vargas Meza:
A redução de danos deve assumir o desenvolvimento de uma proposta de descriminalização dos pequenos e médios produtores, sobre a base de negociações com organizações representativas e reconhecidas das comunidades para a abertura de um processo gradual de abolição da monodependência ilícita e a geração de condições adequadas para propiciar o desenvolvimento em vista de uma mudança econômica das regiões produtoras. A geração de condições para a ruptura da monodependência da economia ilegal e a abertura de condições de desenvolvimento das zonas produtoras, deve iniciar‑se com a proposta de ordenamento territorial e ambiental que conciliem as considerações técnicas do potencial de uso do solo com as expectativas das comunidades assentadas nestes territórios. O âmbito do social deve abrir e proteger formas diversas de participação e organização das comunidades, promover uma ética civil de solidariedade e afirmação cultural, de reconhecimento comum das regras do jogo para dirimir as diferenças. (Meza: 1999, 183).
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forme particuliére de l’accumulation mercantile” In Alternatives
Sud 3(1).
UNDCP. Undcp drug report: 2000.
[1] Coordenador do projeto Cultura e Desenvolvimento de
KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço, doutorando em Filosofia do PPG-Fil,
IFCS, UFRJ, professor de Filosofia da Educação na UNESA.
[2] Dado a extensão do território nacional pareceu mais
verossímil utilizar as taxas proporcionais para as relações entre apreensão‑produção‑área
agricultável utilizada para o mundo. Essas taxas, entretanto, não correspondem,
por exemplo, à produção colombiana. No caso mundial as taxas são
apreensão/produção=1/10,25; produção/área agricultável=1/16. No caso da
Colômbia as taxas são apreensão/produção=1/3,48; produção/área
agricultável=1/1. Isso significaria o seguinte no caso brasileiro e nos casos
de Bahia e Pernambuco: Em 1998, apreendidas 28 tons., produção: 97,44 tons.,
área agricultável:97,44 ha. Para Bahia e Pernambuco, ano 2000, considerando os
pés de maconha destruídos, apreendidos/destruídos: 725,39 tons., produção:
2.524 tons., área agricultável: 2.524 ha.
[3] Em 1999 fizemos uma entrevista estruturada com mais
de 1500 jovens, participantes da 1a. Olimpíada da Juventude Rural do
Submédio São Francisco; no mesmo ano fizemos entrevistas abertas com camponeses
e autoridades públicas na região, ao todo mais de 30 informantes privilegiados;
no ano de 2000 entrevistamos, em grupos focais, jovens camponeses, e, por meio
de entrevistas abertas outras autoridades públicas, informantes privilegiados,
ao todo mais de 50 indivíduos. No anos de 2001, os jovens do Departamento de
Jovens do Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco
desenvolveram uma Gincana, que atingiu mais que 3.000 pessoas, em sete
municípios do Submédio São Francisco, com o tema “Luta pela Paz”. No mais,
mantemos levantamento constante do material da grande imprensa, das pesquisas
dos órgãos públicos e dos organismos multilaterais.
[4] Essas informações foram obtidas com o grupo focal em
2001, confirmadas pela reportagem de Sérgio Ramalho, Jornal O DIA, de 2001.
[5] Neste caso, estamos nos referindo às atividades sócio‑pedagógicas, de caráter religioso, desenvolvidos pela Diocese de Floresta, sendo que a Pastoral dos Reassentados é interdiocesana e ocupa as dioceses de Juazeiro, Floresta e Petrolina.
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