DA
FAVELA AO SERTÃO: JUVENTUDE,
NARCOTRÁFICO E INSTITUCIONALIDADE
Paulo Cesar
Pontes Fraga[1]
O Sertão vai virar mar,
O mar vai virar sertão.
Antônio
Conselheiro
Introdução
Apesar
da vasta distância de milhares de quilômetros e das marcantes diferenciações
geográficas e culturais, há proximidades históricas entre o sertão nordestino e
as favelas cariocas. A primeira, bastante referida, está na origem do termo
favela, uma vez que, segundo registra-se, vincula-se à vegetação a nomear o
morro próximo ao Arraial de Canudos, no Sertão da Bahia. Quando os combatentes
da Guerra de Canudos retornaram ao Rio de Janeiro, após o massacre de Antônio
Conselheiro e seus seguidores, sem ter aonde morar, as autoridades municipais
se omitiram, permitindo a construção de habitações precárias nas encostas dos
morros cariocas, sem o título de propriedade, como uma espécie de recompensa
pelos serviços prestados. Seus moradores, prontamente, batizaram tais
aglomerações habitacionais de favelas, numa referência ao morro de Canudos e
por nestes locais existirem, do mesmo modo, a rastejante vegetação.
Outra
relação de proximidade entre favelas e sertões condiz ao acontecimento de, nas
décadas de 40/50, com o adensamento do fluxo migratório Norte-Sul, parte
considerável de suas populações ser composta por nordestinos e, mais
especificamente, por sertanejos. As favelas cariocas ficaram conhecidas durante
anos como locais predominantemente habitados por uma grande população
sertaneja.
Na
década de 90, contudo, surge um novo elo entre tais localidades, uma nova
colagem, menos explorada pela literatura sociológica, cujas conotações não se
desencadeiam pitorescas. Referimo-nos ao
crescimento do envolvimento de jovens com o negócio das drogas e as suas
calamitosas conseqüências, visíveis, principalmente, no aumento de homicídios.
Tal como se observa a implicação de jovens cariocas moradores em favelas com o
comércio de drogas, é notável, igualmente, o comprometimento progressivo de
jovens sertanejos com o plantio de maconha e com atividades criminosas
correlatas a esta atividade ilícita, nomeadamente na região conhecida como
Polígono da Maconha. Esta ligação transformou municípios da Região do Submédio
São Francisco e do Sertão de Pernambuco com dos mais violentos do país, com
altas taxas de homicídios, principalmente, em pessoas jovens.
É
plausível reconhecer o não envolvimento da maioria dos jovens cariocas e
sertanejos com o negócio das drogas, afinal uma das características das
atividades ilícitas é justamente envolver diretamente parcelas bastante
pequenas da população, mas a maioria inclusa no negócio é jovem. É inegável a
utilização pelo narcotráfico, em suas variadas etapas, de jovens como “bucha de canhão”, na expressão de Gil e
Caetano: “Mero serviçal do narcotráfico”;
nesta potencial economia do ilícito.
Refletir sobre estas realidades diferenciadas, a forma de envolvimento dos jovens e as conseqüências para suas vidas é o objetivo deste trabalho. Na primeira parte do texto apresentamos as conjunturas históricas e sociais que permitiram a existência de atividades ilícitas ligadas ao narcotráfico nestes ambientes. Na segunda parte, buscamos interpretar como se dá o envolvimento de jovens nestas atividades em circunstâncias singulares, mas com componentes análogos. Nossa reflexão é fruto de pesquisas desenvolvidas junto a adolescentes infratores no Rio de janeiro e da participação no Projeto Cultura e Desenvolvimento[2] no Submédio São Francisco.
Rio de janeiro: A institucionalidade do Narcotráfico
Nenhuma
outra grande cidade brasileira vive tão veementemente as conseqüências das
atividades do tráfico de drogas em seu território do que a cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro. A década de 90 vai se distinguir de outros
períodos pela consolidação, intensificação e incremento desta atividade ilegal
e seus reflexos no cotidiano de seus habitantes: intensos tiroteios com armas
de grande poder de destruição, chacinas, invasão de favelas por grupos armados
com intuito de tomar pontos de vendas de drogas, intensificação da violência e
corrupção policial, mortes por balas perdidas, desaparecimentos[3] entre outros acontecimentos.
A
decorrência desses fatos conjetura-se no comportamento de seus habitantes,
reforçando ainda mais, preconceitos em relação aos moradores das favelas e
periferias, imprimindo em toda a sua população um sentimento de insegurança
constante, principalmente entre aqueles, paradoxalmente, menos expostos às suas
mazelas.
A
venda de drogas ilegais, ao longo dos anos, deixa de ser delito de
características subalternas, por envolver pouco dinheiro, para se transformar
em atividade altamente lucrativa e, conseqüentemente, responsável pela
ampliação da taxa de homicídios e criminalidade entre jovens na cidade.
A
comercialização de substâncias entorpecentes não se constitui uma exclusividade
dos anos 90. A negociação de drogas como a maconha é uma prática antiga no Rio
de Janeiro e, notadamente, no interior de favelas. Fala-se que tal exercício
remonta ao início do Século XX (Misse, 1999). Sublinha-se a existência desta
atividade nas favelas cariocas desde a década de 40 (Souza, 1994), período no
qual passa a ser considerada crime com a instituição do Código Penal[4].
De
outra forma, a comercialização de drogas destinava-se, até a década de 60, a um
pequeno público consumidor local e vizinho ao ponto de venda e, cada “boca de
fumo” manipulava pequena quantidade de dinheiro. Em seu romance Cidade de
Deus, Lins (1997) nos relata que na década de 60, a criminalidade no
bairro, cenário da trama, voltava suas atividades mais especificamente para
assaltos a estabelecimentos comerciais e a transeuntes. A venda de maconha era
uma atividade ilícita menor, destinada ao consumo dos habitantes locais e
muitas vezes dirigida por mulheres, que geralmente tinham participação
subordinada na vida criminal. Ter uma boca de fumo era uma atividade ilícita de
iniciativa individual, envolvendo poucas pessoas e sem uma grande rede formada
para garantir a sua existência.
O
tráfico sofre perseguição mais intensiva pela polícia no final dos anos 60.
Autores (Leeds, 1998; Batista, 1998; Misse, 1999) conectam esta maior
persecução ao fato da ditadura militar também passar a considerar o traficante
de drogas um personagem lesivo à segurança nacional. Ao maior acossamento,
incrementa-se também o envolvimento, achaques e propinas da polícia em relação
aos infratores ligados a este tipo de delito[5].
Batista
(1998) considera, mais especificamente, que na criminalização por drogas da
juventude entre os anos de 1968 e 1988, período que engloba a transição do
autoritarismo para o processo de abertura política, houve uma transferência do
“inimigo interno” do militante de esquerda, visto como terrorista pela ditadura
militar, para o traficante de drogas, tendo como elemento fundamental a
consolidação da cocaína no mercado internacional e nacional. Jovens residentes nas cercanias periféricas
da cidade e favelas passam a ser perseguidos pela polícia numa associação imediata
entre juventude pobre e tráfico de drogas.
Durante
os anos 70, o maior consumo de maconha por jovens da classe média (Velho, 1998)
e a entrada e crescimento do uso de cocaína (Leeds, 1999) torna o tráfico de
drogas uma atividade mais lucrativa do que os assalto aos bancos, até então
atividade criminal que dava maior retorno financeiro.
A
consolidação do tráfico de drogas como a mais importante, letal e lucrativa
atividade criminal com reflexos no cotidiano da cidade ocorrerá, principalmente
a partir dos anos 80. Autores citam quatro fatores como fundamentais para o
incremento da lucratividade do narconegócio: aumento da vendas de maconha, que
embora fosse de lucratividade baixa, era comercializada em grande volume; a
entrada efetiva da cocaína no mercado interno; a organização nos presídios e os
assaltos a bancos que permitiram uma acumulação primitiva, pois parte do
dinheiro migrou para a compra de drogas para a revenda. Misse (1999) afirma que
o mercado ilegal de drogas foi dominado pelo jogo do bicho e somente seria
comercializado em grande escala na década de 70, consolidando-se, todavia,
quando passa a ser efetivamente controlado por quadrilhas denominadas Comandos,
que segmentará o território das favelas cariocas.
Existe
uma controvérsia sobre a maior organização do tráfico a partir dos anos 80.
Alguns autores (Amorim, 1993, Leeds, 1999) sustentam a versão da maior
aproximação de criminosos comuns com prisioneiros políticos, ocorrida
principalmente no Presídio da Ilha Grande. Este contato permitiu aos
encarcerados comuns se conscientizarem, no sentido de produziram maiores
reivindicações contra as violações dos direitos humanos no presídio e o sentido
de união propiciado por estas iniciativas estendeu-se aos negócios ilícitos.
Misse (1999) alega não ter observado em suas pesquisas esta aproximação, nem
entre ex-presos políticos nem entre os presos comuns, ou se ela existiu pode-se
colocar em suspeita sua eficácia como fator determinante da organização do
tráfico de drogas em comandos.
A
verdade é que foi o aumento dos negócios e principalmente a entrada da cocaína
no mercado do consumo que possibilitou a maior organização dos envolvidos em
sua circulação. A estrutura da organização se dá na forma de oligopolização por
uma cúpula dos negócios, como já ocorria anteriormente com o jogo do bicho.
Peralva
(2001) é enfática ao assinalar a inseparável relação entre o crescimento da
criminalidade e a desorganização das instituições responsáveis pela ordem
pública no bojo da transição de uma ditadura para governos civis, com acentuado
comprometimento de seus agentes com o crime em geral e a corrupção em
particular. Formando o que denomina simbiose entre corrupção policial e
criminalidade violenta, tendo como uma de suas maiores conseqüências o aumento
do número de vítimas civis das ações policiais legais ou não.
Pode-se
dividir a organização do tráfico em dois períodos, 84-86 quando surgem os
primeiros grupos chamados de Falange e depois, Comando Vermelho, reprimido
pelas autoridades judiciais com a prisão de lideranças importantes como
Escadinha e a morte de Meio-Quilo. A rearticulação de grupos, segundo a lógica
da oligopolização das vendas, ocorre a partir de 1989 com outros grupos que se
fracionaram em “Comandos” variados, mostrando-se mais violentos e seguindo uma
lógica de rodízio dos “donos” dos pontos de vendas. Neste período, dever-se-ia
acumular o mais rapidamente possível capital e transferi-los simultaneamente
para atividades lícitas (táxis, imóveis, motéis, comércio, entre outras).
Aponta-se o período pós-86 como o mais violento, tendo como uma das
conseqüências mais visível, intensificação da concentração de jovens nas
fileiras do tráfico[6].
A
institucionalidade do tráfico, entendida como a criação de redes e referências sociais
tanto entre atores diretamente envolvidos quanto aqueles não envolvidos no
negócio, mas sofrendo suas conseqüências, é fator preponderante para se
entender não apenas o incremento das suas atividades nos morros e periferias do
Rio de Janeiro, mas também no caso descrito a seguir do sertão nordestino.
Estas institucionalidades, contudo, se aludem às desigualdades presentes em
conjunturas diferenciadas tanto no campo quanto no meio urbano brasileiro.
Narcoplantio e Violência
no Submédio São Francisco.
Na
década de 90, igualmente, começa a se destacar no cenário nacional o aumento da
violência, ou mais especificamente, das taxas de homicídio, notadamente entre
os jovens, em municípios do sertão pernambucano. Das dez cidades que apresentam
os maiores índices no país, três localidades estão na mencionada região, ênfase
para o município de Floresta, a segunda cidade do país no ano de 1998, em
relação a este indicador.
O
sertão de Pernambuco é reconhecidamente área de enormes desigualdades sociais e
de conflitos históricos, os quais lhe atribuíram a pecha de região extremamente
violenta. No entanto, os indícios apontam que o recrudescimento da violência
atrela-se a presença das atividades do plantio de maconha.
A
forte institucionalidade do plantio de maconha desencadeou por parte da Polícia
Federal, ações efetivas visando acabar ou diminuir a extensão de área de
plantio. As Operações Asa Branca e, mais recentemente, a Operação Mandacaru
buscaram nos últimos anos reprimir o plantio da erva no Polígono.
Todavia,
as ações desencadeadas pelo Governo Federal na Região restringiram-se à
repressão da atividade, não se verificando articulações do mero combate ao
plantio com medidas que proporcionem aos agricultores e atores envolvidos com o
negócio, alternativas econômicas e sociais de sobrevivência.
Destarte,
além de não suprimir o problema, pois finda a repressão, mais fortemente as
redes se reorganizam ou migram para outras cidades e estados, as Operações não
foram precedidas de outras iniciativas, restringindo-se apenas a eliminar o cultivo de pequenos
agricultores que vêem no manejo da erva uma forma de fugir das extremas
dificuldades em que vivem[7].
Não se
pode esquecer que a ação do Governo Federal no Submédio São Francisco é
historicamente marcada por ter intensificado desigualdades sociais e produzido
o desabrigo de milhares de famílias, devido à construção das Barragens de
Itaparica e Sobradinho. O cultivo da Cannabis na Região é de longa data
(Iulianelli, 2000). Donaldo Pierson já se referia ao cultivo nos anos 50 na
Região do Submédio da Cannabis, mas ainda não se tratava da Cannabis Sativa,
nem havia qualquer relação de uma produção voltada para o mercado, associava-se
às atividades festivas locais (Iullianeli e Fraga, 2001). Somente a partir dos
anos 80 é percebido o incremento das atividades e sua produção em larga escala
para abastecer o mercado nacional, tornando-se a maior produtora nacional de
maconha. O cultivo da cannabis na região é antigo, mas a sua produção
acelera-se, principalmente nesse período.
As excelentes condições hídricas e climáticas; as
dificuldades que o relevo e a hidrografia trazem para a ação policial, aliada
às condições sociais presentes como as seguidas secas das últimas décadas e; os
descasos das várias instâncias do poder Público são considerados elementos
preponderantes na aceleração e expansão da área de plantio. Segundo uma
liderança sindical do Estado de Pernambuco, a presença de maconha já era
notada, mas era insignificante, observando-se, todavia, o seu aumento dos anos
80 para cá.
“
Antes da barragem? Tinha uma incidência, mas ela era menor e começou a aumentar
de uns doze anos para cá. Antes da
barragem eu posso dizer de vinte anos atrás. A maconha apareceu como coisa
pequena e muito pequena e muito distante e começou a aumentar a partir desses
doze anos.
Ela
virou um produto agrícola tão importante quanto a cebola?
Talvez
mais importante...Inclusive com menos terra, menos trabalho, dá mais dinheiro.”
Acredita-se que além das características citadas
acima, a aceleração neste período esteja atrelada ao Escândalo da Mandioca. A
denúncia pública do envolvimento de funcionários do Banco do Brasil com esquema
de corrupção com grandes agricultores da Região implicou em medida de
suspensão, pelo Banco, de operações de incentivo agrícola.Tal medida acarretou
uma séria crise na já frágil agricultura local. No vácuo de créditos oficiais,
o narcotráfico passou a fazer proposta para os pequenos agricultores cultivarem
a erva. O plantio de maconha tornou-se um negócio muito mais vantajoso do que a
cultura de cebola e arroz, produtos tradicionais, uma vez que enquanto uma saca
de cebola custa sete reais, a mesma quantidade de maconha chega a custar 100
reais. Além disso, o narcotráfico utiliza-se de meios de financiamento da produção
isentos de burocracia.
Além dos aspectos já enumerados, uma questão
fundamental não deve ser relegada. As tradicionais rixas de famílias pelo poder
local parecem ter se estendido para o controle do plantio de maconha na área.
Segundo a CPI do Narcotráfico da assembléia Legislativa de Pernambuco é
possível identificar entre membros dos “clãs” tradicionalmente em conflitos
integrantes do narconegócio da Região. Todavia, a Comissão conclui não poder
afirmar a existência de um esquema de crime organizado por não possuir (1)
comando unificado; (2) forma empresarial; (3) planejamento e (4) mecanismos de
lavagem de dinheiro e tendência a transnacionalidade.
A forma de aliciamento de agricultores é variada.
Pode ser no feitio da compra prévia de uma produção ou tarefa ou no
assalariamento de trabalhadores sem terra, reproduzindo práticas de exploração
dos agricultores, peculiares às relações agrárias brasileiras. Geralmente, há o
convencimento do agricultor quanto às vantagens do plantio: os lucros maiores,
o cultivo da erva que requer cuidados e custos menores para a produção e o
pagamento imediato. Nesse sentido, reproduz o esquema observado por
Villaveces-Isquierdo (2000) no caso colombiano, ao invés de agir principalmente
por meio da coação, alicia produzindo redes de amizade ou se beneficiando das
existentes. Os agricultores se inserem no plantio como companheiros de produção
para um produto muito mais atraente do ponto de vista da lucratividade.
A forma de contar com o trabalho do camponês,
todavia nem sempre ocorre segundo este modelo. Pode ser coagindo-os e, através
de ameaças, obrigando-os a plantar, se a sua propriedade for considerada
estratégica para o negócio. Segundo a fala de um deputado estadual do Estado de
Pernambuco, participante da CPI do Narcotráfico da Assembléia Legislativa, as
terras de importantes famílias locais também são usadas no esquema,
assalariando trabalhadores:
“O
esquema funciona com o traficante, o intermediador, contratando pequenos
agricultores da região, sem terra, e utilizam terras das famílias dominantes da
região, colocam as pessoas nesses locais; usam a água através de sistema de
irrigação. Em alguns lugares usam equipamentos públicos, como adutoras. A
adutora de Salgueiro tem sangramento em vários pontos, para a utilização de
água para irrigação. Eles contratam essas pessoas e pagam num sistema de quase
semi-escravidão. Eles montam as cabanas com os alimentos para três meses, que é
o período de cultivo da erva. Nesse período também, os camponeses, peões, vão
para lá e recebem, às vezes, metade adiantada do dinheiro do cultivo e o
restante só no final. Se você fugir, existe um código de ética entre eles que
se isso acontecer, você está morto.
Na
CPI nós tivemos a oportunidade de ver que nas áreas exploradas, sempre que cai alguém,
caem os pequenos agricultores. O traficante está sempre fora da área. Tem as
pessoas que fazem a vigilância da área e sempre há tiroteio. Quem vai preso é
sempre um pequeno agricultor que é preso. Há um código de honra que você não
consegue furar. Eles não passam informações em hipótese alguma.
Independente dos métodos de aliciamento, o
agricultor ao aderir ao plantio da erva entra em uma rede que põe em risco a
sua vida e a sua condição de trabalhador, pois paradoxalmente, o cultivo apesar
de requerer atividade produtiva por parte de quem a cultiva, é, sabidamente,
ilegal. Os trabalhadores das agrovilas[8]
são bastante assediados, por serem áreas onde há boas condições de cultivo
devido à existência de irrigação das terras.
A institucionalização das atividades aumentou
bastante a experiência de violência entre os moradores. Relatos de violência
são bastante comuns entre os trabalhadores e pequenos agricultores,
principalmente nas agrovilas. Episódios de agressão são protagonizados tanto
pelos narcotraficantes, no afã de defender seus negócios, quanto pela polícia
em ações marcadas pelo total desrespeito aos direitos constitucionais dos
moradores, atingindo-os indiscriminadamente, envolvidos ou não com o plantio da
maconha. O depoimento de uma liderança sindical demonstra como a violência
molda comportamento de desconfiança e isolamento entre as pessoas por temerem
por sua segurança e integridade física.
“É um
pouco difícil. Tem lugar que a gente não pode nem dizer que faz parte do
movimento sindical. Nos projetos, como agora no Projeto Iço, em algumas
reuniões, em alguns momentos, nem se pode falar que é do sindicato. Como agora
mesmo teve essa confusão... Eu deixei de passar dentro da agrovila. Ficaram
dizendo que foi entrega, por conta do agricultor que mataram, porque
encontraram maconha... nós que fazemos parte do movimento sindical, quando
essas coisas, a gente tem até que evitar ir aos lugares, andar à noite, vem dos
próprios agricultores que estiveram com a gente. Eu não sei se foi essa mudança,
que passou dez anos sem trabalhar e que
tiveram uma outra opção de ser agricultor do ilícito... É muito complicado. Até
a minha família tem hora que pergunta se eu vou continuar, se não é melhor eu
sair, por conta da violência. Tem hora que eu não tenho respostas para dar a
mim mesma.”
A
posição dos sindicalistas do Pólo Sindical do Submédio São Francisco é de
refutar impetuosamente o aliciamento dos trabalhadores rurais e dos pequenos
agricultores pelos narcotraficantes. Na luta para livrar o pequeno agricultor e
o trabalhador rural desta “nova forma de exloração”, segundo se referem, uma
liderança histórica da região foi assassinada em uma emboscada por um
adolescente, no período em que denunciava a presença cada vez maior de
narcotraficantes no aliciamento de trabalhadores para o cultivo da erva. Esta
posição deixa os sindicalistas vulneráveis à violência dos agentes do
narconegócio, de uma nova violência.
De seu
modo, a membros das Polícias Militar e Civil são acusados de uso abusivo de força e de envolvimento com
determinando bando, estando envolvidos não só com o narcoplantio, mas
principalmente com os crimes de pistolagem e assaltos a caminhões.
Um
episódio ocorrido em uma agrovila, quando uma pessoa acusada de envolvimento
com o plantio e morte de um policial estava sendo procurada, chocou e revoltou
moradores pela forma como foi conduzido pela Polícia Militar, tratando todos os
trabalhadores de forma extremamente abusiva.
“O que
eu soube é que eram cinco da manhã quando o pessoal chegou batendo nas portas.
Estavam todos encapuzados, quando o dono da casa abriu a porta já estava com a
arma e depois é que o pessoal foi conhecer que era polícia, mas quem já tinha
inimigo... Foi cinco da manhã, o pessoal estava dormindo ainda com as portas
fechadas. Quem não abria as portas eles
derrubavam a porta. Eram muito agressivo. Pessoas idosas passavam mal e eles
diziam que já andavam com a ambulância para isso mesmo. Uma vez eu disse para
eles, que se minha mãe passasse mal, eles é que tinham que pagar. Eles disseram
que a ambulância estava ali. Eu disse que a ambulância podia socorrer, mas não
dava a vida. Foi um massacre porque pessoas tinham uma faca dentro de casa,
eles achavam já que eram bandidos. Quem realmente era bandido não foi preso.”
Uma
jovem moradora de uma área onde há plantio relata também a violência
indiscriminada da polícia contra os trabalhadores rurais, vistos
indiscriminadamente, como envolvidos no plantio.A violência inclui técnicas de
tortura para confissão:
Chegou
um negão assim numa Blazer foram na roça, do lado dessa roça tem um plantio de
maconha, só que não tinha ninguém, aí na outra que não tem nada a ver, que até
meu vizinho que o pai é dono, chegou lá tinha um pessoal trabalhando, o pessoal
da polícia queriam porque queriam que eles fossem o dono da roça de maconha aí
pegou chamou (me desculpe pela palavra) começou a chamar as mulheres de
vagabunda, meninas começaram a chorar, quebraram dois ovos na boca do homem
para ele engolir, começou a bater, espancaram ele, aí levaram, acharam arma lá
na roça. Levaram trouxeram para Rodelas aí foi que a família...
Jovens e o Narcotráfico
no Rio de Janeiro e no Sertão: Variações sobre um mesmo tema
Na Cidade Maravilhosa....
É fato
inegável a ampliação difusa das atividades de venda de drogas ilegais em
direção à maioria das favelas e conjuntos habitacionais da cidade do Rio de
Janeiro, na década de 90. Seja em relação à quantidade de pessoas envolvidas em
suas atividades ou no tocante à ampliação do número de pontos de vendas. Não
significa, evidentemente, considerar toda a população destes bairros envolvida
com o tráfico, no sentido da realização de tarefas para organizações criminosas
ou de sua maior cumplicidade voluntária às suas atividades. Trata-se de
compreender a relação estabelecida entre os agentes do narconegócio a os
moradores, pois a sua presença atinge a todos indiscriminadamente. Os grupos
impõem às populações normas rígidas de comportamentos, a nomeada “lei do silêncio”,
e o cumprimento das condutas tidas como toleráveis à segurança do negócio,
versando sobre punições severas àqueles que denunciem ou comentem aspectos
arrolados ao funcionamento das atividades internas do tráfico (Rafael, 1998;
Peralva, 2001).
As
favelas são territórios cujas estruturas físicas e sociais propiciam a
proliferação desta atividade ilegal. A ausência do Estado, mormente em relação
à segurança pública e políticas de inclusão; sua sinuosa topografia, obstáculo
para ações rápidas dos órgãos de repressão; a desigualdade histórica marcante
entre seus moradores e os residentes em outras áreas da cidade; o isolamento de
seus habitantes concernente ao acesso aos investimentos públicos e; a violência
policial histórica contra seus moradores são elementos propícios ao
desenvolvimento de atividades irregulares.
Peralva
(2001) teceu considerações importantes sobre as ligações de jovens residentes
em favelas com o narcotráfico. Assinala como a melhoria nas condições de vida
da população favelada não foi acompanhada de uma diminuição da violência,
paradoxalmente, antes as favelas eram mais miseráveis e menos violenta. Porém,
nos últimos anos, aumentam-se as desigualdades sociais, fazendo com que os
jovens favelados se integrem conflitivamente aos quadros da experiência do
individualismo de massa. A favela estaria mais próxima da cidade devido à
diminuição de determinados indicadores, à maior integração cultural e de
modalidades de lazer. Contudo, a presença do narcotráfico reterritorializou a
favela, tornando-a espaço físico com leis próprias, criando novas distinções,
constituindo mútua negação de uma real integração.
O
fomento das atividades do tráfico acarretou como suas maiores conseqüências o
envolvimento crescente dos jovens nas variadas ocupações vinculadas a sua
organização e conseqüentemente na sua maior vitimização fatal, derivada da
inclusão de armamentos com largo espectro de destruição. O tráfico de drogas
produz uma intensa violência, principalmente por abarcar uma grande quantia de
dinheiro em suas transações; do confronto pelo domínio de pontos por quadrilhas
rivais, do envolvimento da polícia e do confronto desta instituição com os
traficantes.
A
entrada mais numerosa dos jovens ocorre mais densamente a partir da segunda
metade da década de 80, como observado, devida, sobretudo, à segmentação dos
oligopólios exercida pelos chamados comandos. O sentimento de desconfiança
dentro e fora das redes e a ambição dos mais novos são vistos como as
principais razões para esta segmentação e conseqüente entrada dos mais jovens.
Destaque-se,
todavia, registros da presença de crianças e adolescentes na venda de drogas já
na década de 60. Queiroz (1978) cita a famosa pesquisa (SAGMACS, 1960) dirigida
por Pe. Lebret[9] sobre as favelas cariocas, onde se observou o envolvimento
infanto-juvenil com a venda de maconha. Queiroz relata como a sociedade
explorava o trabalho da população favelada infanto-juvenil, seja no legitimado
trabalho juvenil-feminino doméstico para a população mais abastada da sociedade
carioca, exercido sem garantias legais, ou no trabalho ilícito do tráfico de
drogas. Apesar do tom preconceituoso do texto em relação à população moradora
em favelas e da generalização de suas observações, indica a longevidade da
relação de crianças e adolescentes com a venda de drogas:
Meninos e
adolescentes passam em geral o dia todo na favela sem fazer nada. Formam grupos
ou bandos, cada qual com seu lugar específico de reunião, e procuram distração.
A delinqüência torna-se para eles o meio mais fácil de conseguir dinheiro. Nas
favelas, o núcleo de atividades ilícitas é em geral o tráfico de maconha.
Traficantes e viciados buscam meninos para serem os “portadores da erva”, na
esperança de que a polícia não desconfie destes. Os meninos são pagos, mas
também são ameaçados com toda a sorte de castigos se denunciarem seus
“patrões”. Para domina-los com mais
segurança, os “maconheiros” obrigam-nos a fumar os cigarros feitos com a erva;
tornando-se pequenos viciados, os meninos se interessam mais vivamente no
comércio da droga e guardam mais seguramentte o segredo sobre ele. Os bandos de
adolescentes e os “maconheiros” são o pesadelo daqueles pais que desejam evitar
más companhias para seus filhos. Para evitar tais freqüentações, lança-se mão
de meios variados: amarrar os meninos aos armários ou aos pés da mesa;
prende-los em cubículos ou em quartos; esconder-lhes as roupas, principalmente
as calças. Todavia se a vida do grupo delinqüente tenta o rapazinho, acaba
encontrando meio fácil de fugir e de se integrar no bando. Não temos também
dados que permitam saber quantos, entre os pais realmente se preocupam com este
problema: é bem provável que a maioria seja indiferente, ou mesmo veja no
tráfico de maconha um meio de arranjar dinheiro.(Queiroz, 1978:217)
No período mencionado por Queiroz, observa-se que a ligação
dos adolescentes e das crianças com o tráfico de drogas restringia-se à entrega
de maconha para compradores interna e externamente ao espaço da favela. Apesar
de não acreditarmos haver uma generalização do comércio de drogas no interior
da favela, a venda da droga já se evidenciava como atividade a se utilizar de
jovens para o seu funcionamento. De outra forma, os jovens desempenhavam
atividades subalternas, como a mera entrega, embora lhe oferecessem riscos. As
“bocas”, de seu modo, não são relacionadas como locais resguardados com grande
aparato de segurança, onde conseqüentemente, existiriam armamentos pesados.
Todavia, já se apontava para a utilização de castigos e meios violentos para
aqueles que não se submetiam às normas internas do negócio.
A
mudança operada na venda de drogas ilícitas e o aumento de seus negócios nas
últimas décadas tiveram como elemento demarcador o fato das atividades do
tráfico de drogas concentrarem cada vez mais contingente razoável de pessoas.
Diferentemente de outras atividades criminosas, o tráfico de drogas e,
especialmente a cocaína, requer para o aumento de seus lucros a entrada de mais
gente no seu processo produtivo. A departamentalização das atividades de um
ponto de venda com grande volume envolvem: a endolação das drogas (confecção de
papelotes), geralmente realizada por meninas e mulheres; meninos vigias do
ponto (olheiros), meninos mais velhos que fazem entrega das drogas (aviões);
meninos que fazem venda em pontos específicos da favela (vapores); adolescentes
que realizam patrulhamento na área portando armas de alto poder de destruição
(segurança ou soldados); encarregados, gerentes e o dono que podem ser
adolescentes, mas geralmente são adultos (Leeds, 1998).
Um
ponto de venda bastante movimentado pode empregar centenas de pessoas. É sem
dúvida um mercado de trabalho. Um amplo mercado de trabalho do ilícito, se
considerarmos as estimativas da existência de 600 pontos de vendas na cidade.
Assim, o tráfico é um grande empregador e diferentemente de outras atividades
ilícitas, é produtivo.
A
produtividade dos atos ilícitos ligados ao narcotráfico advém de suas
características de requisitar trabalho no cultivo, beneficiamento, distribuição
e comercialização. O preço é definido por um mercado que se favorece da
condição de ilicitude do produto (Unprimny, 1995; Fraga, 2000).
Em seu
crescente processo de incorporar elementos da organização empresarial
capitalista às suas atividades, o narcotráfico do Rio de Janeiro inova, promovendo
medidas de incentivo às listas de produtividade. Em sua edição do dia 01 de
novembro de 2001, o jornal O Dia noticiava caso de uma favela da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, onde os “vapores” que se destacam na venda de
cocaína recebem troféus e prêmios em dinheiro.
Segundo Déo, os vendedores de droga (vapores) que se
destacam ganham troféus de Pé de Pano, o braço direito de Juca Bom. O preso
explicou ainda que o bom vendedor também recebe promoção, com aumento de
“salário”. “Normalmente paga-se R$ 15 pela venda de 125 papelotes. Como já
estou há mais de três anos no movimento, recebo R$ 100 por semana”, explicou o
traficante, que é analfabeto e nasceu no Cangote do Urubu, na Paraíba.
Déo contou ainda que a frase “Cristo Voltará”, escrita em
vermelho, demarca de forma camuflada a área da Favela de Parada Angélica
dominada pelo Comando Vermelho. A favela vizinha, Santa Lúcia, é dominada pelo
Terceiro Comando. (O Dia,
01/11/2001, pág. 18)
É, como bem definem Ribeiro e Iulianelli (2000), um capitalismo
do ilícito. As drogas são, na verdade, mercadorias cuja proibição do uso torna
criminosa todas as outras atividades necessárias para a sua circulação. Isto é,
diferentemente de outras atividades delituosas como o seqüestro, o roubo, o
furto, não se trata de uma criminalidade de pilhagem, pois cria valor agregado,
cuja proibição somente aumenta preço da mercadoria.
Busca-se
no entendimento do tráfico como atividade produtiva, justamente apontar a
imensa rede cunhada para garantir a sua comercialização. Neste sentido, o fato
de ser uma mercadoria ilegal, carreia a criação de uma rede paralela à mera
atividade de produção da mercadoria, pois carece de lançar mão de uma segurança
armada e de uma trama de corrupção, compreendendo autoridades policiais e
jurídicas.
É
nesta imensa rede empregadora de pessoas para a produção e vigilância da
mercadoria que jovens se envolvem.
Têm-se discutido, entretanto, porque os jovens, adolescentes e também
crianças tornaram-se alvos privilegiados desta rede do ilícito e porque são
suas vítimas preferenciais[10].
A
título de ilustração, ressalta-se a cidade do Rio de Janeiro como a única
grande cidade brasileira onde os delitos relativos às drogas superam os crimes
contra os patrimônios e os homicídios são a principal causa de morte entre
adolescentes e jovens[11].
Analisar
o crescimento do narcotráfico nas favelas cariocas e compreender a vitimização
e o envolvimento crescente dos jovens em suas ações requerem incorporar
elementos conjunturais produzidos e existentes interna e externamente ao
território destas aglomerações habitacionais. De outra forma, significa,
igualmente, entender que a violência e a desigualdade se agudizam em locais e
conjunturas onde já se caracterizam processos intensivos de exclusão social.
Devemos,
assim sendo, desfocar o escopo da análise, repelindo a redutora e simplificada
explicação ancorada na culpabilização dos jovens e de suas famílias pela sua
entrada na delinqüência. Teorias conservadoras sempre insistiram em depositar
no indivíduo a razão última para a entrada na vida criminal, como se fosse uma
mera escolha. No caso específico dos adolescentes, muito se investe no sentido
de reconhecer na noção de família desestruturada a causalidade da
delinqüência. Esta tendência tem se agravado na atualidade, marcada pelo
individualismo de massa, fenômeno social travestido por sua psicologização,
onde os indivíduos são vistos como derradeiros, senão únicos, responsáveis
pelos seus sucessos e seus fracassos, num aforismo excludente das conjunturas
sociais.
Vasculhar
a racionalidade do crescente enfileiramento de adolescentes e jovens no
narcotráfico demanda considerar dois fatores importantes na sua composição: a
atração para a entrada no mudo do consumismo e o papel da exploração do
trabalho como precarizador das relações sociais.
Não é
incomum verificar nos jovens perfilhados ao narcotráfico a sua atração por
consumir produtos de grifes famosas, cujo marketing agressivo apresenta como
elemento de diferenciação social. Em suas falas desfilam uma variedade de
marcas de tênis, calças e camisas, objetos de seus desejos, mas que nunca
poderiam usufruir se não estivessem desempenhando atividades na venda de
entorpecentes. Muitos declaram que sua entrada para o tráfico estava ligada ao
desejo se possuir tais bens, deixando transparecer que o mercado consumista era
um dos elementos direcionador de suas ações delituosas. Tal impulso para
desempenhar tarefas no “mercado informal de trabalho” do tráfico parece compor
a vontade de diminuir o hiato existente entre o seu poder de consumo e a
pressão social para consumir, para afirmar-se socialmente. Não devemos,
contudo, deixar de observar que tal desejo não é exclusividade destes jovens,
compondo-se como elemento demarcador das relações sociais do capitalismo deste
final de milênio. Segundo Bauman (1998) designou, a sedução do mercado como a
grande “igualadora” e a grande “divisora” das relações sociais[12]. Assim, esses jovens reproduzem práticas sociais
verificadas por outros agrupamentos, com a diferenciação de utilizar um meio
produtor de riscos sociais.
Em
relação ao segundo fator apontado, observamos como o contato precoce com o
mundo do trabalho e a necessidade de ainda criança ajudar na composição da
renda familiar eram presentes entre adolescentes compreendidos nas malhas do
narcotráfico. Em trabalhos desenvolvidos com jovens infratores[13], verificamos que parte considerável dos jovens havia
trabalhado em diversas atividades, antes de compor as fileiras do narcotráfico.
Desempenhavam atividades laborais como ambulantes, em oficinas mecânicas, de
marcenaria e em biscates diversos. Os seus contatos precoces com o trabalho e
as circunstâncias indignas de desempenhá-lo: baixos salários, condições
insalubres, humilhações, ausência de cobertura legal fazem com que estes jovens
e crianças descubram que o trabalho, ou a ocupação que lhes está reservado, não
constituiu componente valórico ou não representa elemento dignificante de sua
condição humana. São referenciais que ora são usados como negação desta
realidade, ora como adesão a ela.
Mesmo
quando não possuem experiências no mundo laborioso, muitos vêem que as
condições de trabalho de seus pais não possibilitam o acesso ao mundo de
consumo desejado. Por outro lado, consideram a escola que freqüentam
desinteressante, distante e que não lhe instrumentalizará para competir no
difícil mercado de trabalho do mundo globalizado. A maioria dos jovens pobres
continua acreditando na capacidade e no papel destas instituições e nos valores
correlatos e se submetem a elas, mesmo nas condições apresentadas. Todavia,
muitos que enveredaram pelas malhas do narcotráfico não crêem no papel social
dessas instituições, notadamente o trabalho, em sua prática de vida. Assim, se
submeter ao trabalho indigno, mas honesto, ou ao trabalho desonesto, perigoso,
porém rendoso, parecem ser lados distintos de uma mesma realidade, produtora de
subjetividade assujeitadas[14].
Os
dois casos descritos, a seguir, apresentam elementos de exploração do trabalho
e do apelo ao consumo. Com estes exemplos, todavia, não queremos traçar nenhum
perfil do adolescente que entra para o narcotráfico. Não acreditamos na
existência de características pessoais que tornem o jovem mais suscetível a
entrada no negócio das drogas, nem elementos sociais a defini-los,
invariavelmente. São bastantes diversos os elementos e, muitas vezes,
contraditórios. Nem mesmo o fato de trabalhar cedo se torna uma característica
que constitua um pré-requisito para se produzir um “delinqüente”, pois o
delinqüente é fabricado na relação, não é uma característica à priore, é fruto
do processo de subjetivação[15] .
Mas
não se pode negar, e os dois casos apontam para esta direção, a
institucionalização desta atividade e sua capacidade de se arrolar como
alternativa, no leque pobre de opções oferecidas para esses jovens, pautando-se
como elemento de sociabilidade . A questão do trabalho e a do consumo apenas
dão suporte para sua legitimação.
O caso
de um adolescente de quinze anos é bem característico. Desde pequeno trabalhou
como ajudante na marcenaria do pai no Bairro de Guadalupe. Devido a várias
desavenças com ele, que segundo o jovem, o discriminava por ser filho de uma
união em que não fora feliz e não se encontrava mais envolvido, terminou por
sair do trabalho e morar com uma tia na Ilha do Governador. Como precisava
trabalhar, já que o pai não mandava dinheiro para ele, acabou trabalhando como
ajudante de um trailer na praia do Bananal no mesmo bairro em que morava.
Passou a ser abordado por traficantes no bairro em que residia propondo-lhe
vender drogas. No princípio resistiu, mas aos poucos foi cedendo, sobretudo,
porque a venda possibilitar-lhe-ia em poucos dias ter mais do que ganhava em um
mês no seu atual trabalho. Com o dinheiro recebido na venda de drogas passou a
se vestir com roupas de grife, a namorar “meninas bonitas”, freqüentar motéis e
provar ao pai que poderia se virar sem o seu dinheiro. Um tempo depois, foi
preso em uma blitz da polícia quando se encontrava com uma quantidade
significativa de cocaína.
Este
caso possui componentes que nos permitem reflexões. Destacamos, notadamente, o
fato dele ter tido contato com o mundo do trabalho, antes de entrar para a
venda de drogas ilegais. A história da prática tutelar no Brasil é rica em
experiências institucionais que buscavam no mundo do trabalho elementos de
formação moral preventivos à prática delinqüencial (Rizzini,1983;1995). A
utilização dos braços ifanto-juvenis na produção era legitimada por ser visto
como prática educativa. Vimos neste caso que o mito criado em torno do trabalho
e suas qualidades profiláticas, ainda bastante presentes em programas voltados
aos adolescentes de baixa renda, não se constituíram um elemento preventivo à
sua entrada para o tráfico de drogas. A relação do adolescente com o trabalho
“honesto” era paradoxal. Ao mesmo tempo em que se lamentava por sua entrada na
venda de drogas e transparecia arrependimento de ter saído do trabalho no
trailer, pois se tivesse continuado neste tipo de ocupação não estaria
cumprindo medida de privação de liberdade, disse que só foi preso porque “deu
bobeira”, senão ainda continuaria usufruindo uma série de “mordomias”: moto,
meninas, entre outras.
Um
outro caso refere-se a um adolescente de 16 anos, morador de uma favela na Zona
Oeste da cidade. Desde cedo ajudava sua mãe vendendo produtos na barraca de um
camelô. Nunca chegou a conhecer o pai, que tinha se separado de sua mãe quando
ainda era muito pequeno. Desde muito cedo conciliou os estudos na escola
municipal perto de sua casa com os biscates. Suas constantes reprovações e sua
“pouca vontade em estudar”, segundo sua fala, fez com que aos poucos
abandonasse os estudos. Foi se aproximando dos traficantes locais e passou a
desempenhar atividades no narcotráfico: levar recados, entregar drogas a outros
pontos e vender drogas fora da favela, até ser pego pela polícia em um momento
em que “crescia” dentro da organização.
Diferentemente
do primeiro caso relatado, este outro adolescente não se mostrava
arrependimento por ter entrado para o tráfico, lamentava apenas ter “vacilado”
e ter sido pego. Acreditava que alguém o entregou, algum x-9, por inveja,
devido ao fato de estar “ganhando dinheiro” e de sair com as meninas mais
bonitas do local.
Trabalhar
para o tráfico de drogas é uma “opção” reveladamente mais rendosa, permitindo
mais imediatamente o acesso aos bens de consumo de massa. Por ser produtiva e
possuir uma forte hierarquização, esta atividade ilícita muitas vezes torna
nebulosa a tradicional dicotomia, trabalhador x bandido. Não se pretende ao
tecer tal afirmativa, asseverar o não reconhecimento dos jovens envolvidos com
o negócio das drogas de tal atividade se constituir em uma ação ilícita.
Todavia, não é incomum perceber como jovens se referem a esta atividade,
constantemente, como trabalho e, tais como outras tarefas já desenvolvidas
referentes ao mundo do trabalho legitimado socialmente, descoberto de garantias
legais.
A
informalidade expressa, mormente, em um tirocínio com o trabalho marcado pela
ausência de cobertura trabalhista legal, a experiência de tratamento
diferenciado em relação a jovens de outros estratos sociais são elementos que
concorrem para que o tráfico se componha como mais uma informalidade e
ilegalidade em sua vida, já tão habitada de discriminações. O tráfico de drogas
e a sua institucionalização, intensificada nos últimos anos,é uma referência na
vida de muitas crianças e jovens habitantes de comunidades pobres. Tal
referência não é necessariamente positiva, ao contrário, mas
diferentemente de outros jovens que
possuem menos contatos com o universo da venda de drogas e seu arcabouço de
riscos, a relação deles é bastante imbricada.
Os
contato com a institucionalização da atividade de venda de drogas, assim como
com os atores das instituições de contenção e de repressão são elementos
basilares para a permanência de jovens nas malhas desta rede do ilícito. O
tráfico se apresenta, também, como mais um componente produtor de
subjetividade, submetendo os jovens às suas regras e hierarquias combinando-se
com elementos fortemente presentes na vida desses adolescentes e jovens como a
produção social do apelo ao consumo.
..... e no Sertão
Os
jovens do Submédio experimentam uma situação ao mesmo tempo diferenciada e
similar aos jovens cariocas citados neste trabalho, vivenciando em seu
cotidiano, circunstâncias de extremas desigualdades. Muitos dos municípios do
Sertão do Submédio concentram, atualmente, o maior contingente de sua população
nas áreas urbanas devido à dificuldade do exercício das atividades agrícolas,
conseqüência das condições climáticas e sociais, em uma inversão das
características demográficas[16] históricas. As áreas urbanas destas cidades não apresentam
alternativas viáveis de sobrevivência, sendo que aos jovens, sobretudo, não são
oferecidos meios dignos de ocupação. Mesmo em cidades onde há um maior desenvolvimento
econômico como Petrolina, a utilização de alta tecnologia agrícola acarreta na
absorção reduzida de força de trabalho e, muitas vezes, de maneira irregular.
Observa-se
em muito destes jovens um desprendimento e desilusão quanto à possibilidade de
viver da agricultura, seja como pequeno agricultor ou como assalariado. Migrar
para outras regiões do país continua sendo opção quase que exclusiva. Observam
em seus pais, que a dedicação de anos e anos no cultivo da terra não conduziu à
melhoria de suas condições de sobrevivência, mas à degradação de sua condição
de trabalhador rural assalariado ou de pequeno agricultor. As políticas
agrícolas oficiais, por seu lado, não se realizam ou se concretizam,
imprimindo-lhes um sentimento de abandono. A maioria destes jovens, por sua
vez, é mais bem informada e possui uma educação superior a que tiveram seus
pais e são mais inconformados com determinadas situações por eles vivenciadas,
não naturalizando a experiência da privação social.
Neste cenário de extrema desigualdade e pobreza
refundadas, o narcotráfico encontrou um próspero terreno para desenvolver suas
atividades entre os jovens. Nas
redes criadas pelo narcotráfico nesta Região, há um papel de destaque para eles,
incorporando-os em suas fileiras, reproduzindo a exploração do trabalho, a
violência e a concentração de renda inerente às relações agrárias no Brasil, em
particular, e à sociedade brasileira, em geral.
Os
jovens são reconhecidos pela população local como os mais atingidos pelo
negócio das drogas. A participação desses atores varia bastante, podendo ser
incorporados como agricultores, trabalhadores assalariados, conforme
anteriormente mencionamos ao nos referirmos à forma de aliciamento; vigias de
plantações; transportadores; seguranças de carregamento, entre outras
atividades correlatas ao crime. Esta participação origina um afastamento dessas
pessoas do convívio com outros agricultores, fazendo com que a população local
consiga distinguir a implicação com a conduta delituosa devido às mudanças de
comportamento e, especialmente, pelo súbito aumento do consumo de bens.
De outra
forma, geralmente a participação nas atividades não representará enriquecimento
para aqueles submersos nesta forma do narconegócio. Num ambiente bastante
pobre, cujas condições de sobrevivência são extremamente difíceis, o
envolvimento com o plantio da droga ilícita pode representar melhoria das
condições de sobrevivência:
“De vez
em quando tem uns pontos que a gente... vêm uns carros diferentes, pessoas
diferentes... Tem gente de lá e fora de lá. São pessoas que não são diretamente
reassentadas, são parentes de reassentados. É primo, sobrinho que vão trazendo
a família e vão construindo casa fora da agrovila e vão se envolvendo. Aí, vão
pegando os filhos dos reassentados..
Tem
muito jovem envolvido?
A
maior parte é de jovens, de quinze anos para cima. Pessoas que chegaram há quatro, cinco anos na agrovila ou praticamente nascidos lá.
(...)
Os
bandidos também. Os bandidos trabalham... Eles querem conciliar.Dizer que
trabalham porque depois eles aparecem com uma moto, um carro, aí podem dizer
que foi da roça e que trabalhava com o pai, mas na verdade você sabe como é...
Observa-se
aqui também, entretanto, para além da imediata sobrevivência, necessidades
produzidas pelos fenômenos do consumismo e do individualismo de massa. Parte
dos jovens sertanejos, tal como os jovens do Rio de Janeiro, estariam atraídos
pelas marcas e grifes que habitam e se originam nas grandes cidades brasileiras
e do planeta. A velocidade da comunicação representada principalmente pelas
grandes redes de televisão aberta e por transmissão via satélite é vista por
atores locais como uma das principais responsáveis por este fenômeno. O apelo
ao consumo individualista de massa é hoje, também, significativamente marcante
entre jovens sertanejos:
No
sertão tem uma coisa interessantíssima que nós não conhecíamos há dez anos
atrás. As grandes grifes do Centro-Sul, Sudeste, têm hoje lojas em todas as
cidades do sertão. Você chega numa cidade como Serra Talhada ou Salgueiro e
encontra Tritton, Guess, M. Oficcer, quer dizer, a elite local hoje copia os
mesmos parâmetros de consumo do Sul. Isso passa pela mídia eletrônica, pelo
consumismo e esse consumismo é que estimula o jovem a ingressar na busca do
lucro fácil, do retorno imediato. Você não tem isso aí numa atividade duradoura
e permanente e difícil que é a agricultura, mas vai ter no crime. Isso me
parece uma questão extremamente grave.
Muito
dos atores locais identificam na entrada do jovem para o plantio, uma forma de
acesso a este tipo de consumo, não possível pelas vias tradicionais de
ocupação. Alguns diferenciam as razões de entrada para o circuito do plantio da
erva, denotando que jovens e adolescentes sem famílias entram por razões
distintas dos agricultores com famílias.
É Claro que para muitos deles chegar a plantar é um pouco
um drama, porque se envolvendo com o plantio de maconha entram em um giro, que
eles mesmo dizem só se sai morto. É arriscado. Especialmente são aliciados os
jovens. A geração que se criou agora de
jovens, se criou com a televisão e o padrão de vida que a televisão apresenta
aqui é alcançado unicamente através do narcotráfico, pois a grande maioria dos
jovens não tem condições de alcançar isso. Tendo e vendo esse padrão de vida
diante dos olhos, muitos jovens querem tê-lo e não se importam mais. Agora as
pessoas que são casadas e entram nesse giro por necessidade. A dificuldade
econômica chega a um certo ponto e tem
chefe de família que chega a alternativa: ou viajar deixando a família e
buscando o trabalho que é sempre mais difícil e ver a família se acabar de fome
ou entrar no plantio. Isso é um drama de consciência. Tortura mesmo muitas
pessoas.
Outro depoimento compara a situação dos jovens com
o plantio no semi-árido àquela vivida pelos jovens das favelas e periferias das
grandes metrópoles brasileiras com a venda de drogas, destacando como há uma
sedução em relação à possibilidade de ascensão e de facilidades para o
consumismo:
A
outra questão é o envolvimento de uma parcela, principalmente de trabalhadores
jovens e pobres, que são recrutados para o cultivo e para o negócio das drogas.
A eles são oferecidas oportunidades de ascensão social. Ele quer uma moto, um
salário, uma roupa, um porte de arma, segurança... é muito parecido com o que
acontece com o morro. Tem aquela possibilidade de acesso, de ascensão social
que acontece com os jovens no morro. Quando algum deles descumpre alguma regra,
são assassinados e facilmente são substituídos.
A
presença de redes do negócio nas localidades, seduzindo ou coagindo os jovens e
suas famílias, logicamente, facilita o contato e torna tais elementos produtor
de sociabilidades. Tal qual as tradicionais relações de trabalho agrícola
brasileiro que sempre utilizaram a força de trabalho de crianças, adolescentes
e jovens, explora-se, igualmente o trabalho infanto-juvenil. A família, muitas
vezes é mais um elo a impulsionar os jovens na entrada nesta seara, devido às
precárias condições de vida. Um morador da cidade de Salgueiro citando uma
reportagem do Jornal do Commércio de Pernambuco revela uma forma de
funcionamento da rede que muitas vezes inclui a família e lança mão da
imperativa “lei do silêncio”, a garantir
o anonimato dos principais beneficiados pelo negócio:
Há pouco tempo o
jornal do comércio fez uma reportagem aqui, depois da operação Mandacarú, e
eles passaram vários dias aqui para conseguir conquistar a confiança dos jovens
e entrevistou crianças de 12, 13 anos, tomando conta de plantio de maconha por
aqui. Esse menino, que no começo do ano se matriculou na escola, quando chega
na hora da maconha ele vai para lá. Aí, a evasão escolar cresce. Essa escola
não tem atrativos, o pai também não sabe
para serve essa escola e que ele vai ganhar dinheiro com aquela maconha. O
menino respondeu para a repórter: “Quem te colocou aqui?” E ele respondeu
“Papai” e quem mandou papai? “Não posso dizer não”.
Nem
todos os jovens instados a participar do plantio e de atividades correlatas ao
narconegócio aderem à prática ilícita. Mas reconhecem que sopesam suas
decisões. Outros entram e saem pelo medo de participar de uma atividade que
reconhecem como ilegal. Assim, o narcoplantio vai se referenciando na vida de
muitos desses jovens que sabem poder
aderir a rede, se assim lhe for conveniente. Se num determinado momento, a
negativa se impõe como ação, em outras pode ceder-se ao aliciamento.
Não se
trata de uma mera escolha, há mesmo entre os que se conformam às regras e
hierarquias do negócio, um drama de participar de uma atividade reconhecida
como ilegal. Pois o ilegal é imoral, é indigno. O fato de ser uma atividade
produtiva, no caso do plantio, parece diminuir um pouco este sentimento de ser
“um bandido”, “um covarde”, mas não o elimina.
Dois depoimentos de jovens convidados para
trabalhar no plantio ilustram a face daqueles que resistem ao assédio para
trabalharem no plantio:
Graças
a Deus, eu não fumo nem um tipo cigarro, nunca nem fumei, cigarro comum, mas
esta lá meus colegas lá, eu já peguei, deixei para lá e graças a Deus não quero
nem (...) Fui convidado para plantar, muitos colegas meus foram convidados para
plantar, mas graças a Deus não preciso disso, para mim não quero nem conversa
com isso, porque tem outros meios da gente trabalhar e ganhar um dinheiro.
Eu
vi que aquilo lá não era serviço de homem, no meu serviço que eu vivo, eu vivo
mais melhor. É melhor a gente ganhar pouco e a policia não andar atrás do que
ganhar muito e a policia nos perseguir.
As históricas desigualdades do sertão
nordestino oferecem aos jovens esta nova faceta. O plantio de maconha é,
também, um elemento de desestrutura de lutas importantes dos pequenos trabalhadores
da região e que sem um enfrentamento sério pode significar nefastas
mutações na região.
Considerações Finais
Tratamos
aqui de duas realidades atravessadas pelo tráfico de drogas em contextos
culturais e sociais distintos. Nelas, o envolvimento de jovens com os negócios
ilícitos ocorre em contextos onde sua institucionalização torna-se elemento
importante de sociabilidade. Cabe, contudo, compreender como se estabelece o
contato com este tipo de criminalidade e a conjuntura social que lhe permite existir.
Refutamos, a interpretação centrada no indivíduo, para acolher a compreensão
voltada para as clivagens de classes como orientadora da composição de redes de
relação social (Adorno et allii, 2000).
As
desigualdades sociais são elementos preponderantes para a criação de redes de
sociabilidades alternativas àquelas legitimadas socialmente. A entrada de
pessoas para esta rede vai depender dos contatos e do envolvimento estabelecido
para com seus agentes. No caso específico do narcotráfico, a situação é mais
agravada, pois o seu caráter produtivo embaça a distinção de sua ilicitude.
Como bem acrescenta Tokatlian (1999), a criminalidade organizada se estabelece
numa atmosfera espaço-temporal na qual as relações individuais e coletivas são
suas coadjuvantes no processo de se arraigar e de se referenciar, retirando-lhe
a pecha de atividade anômica, desviada ou isolada. Insere-se numa complexa
dinâmica, na qual a sociedade é simultaneamente cúmplice e vítima de seus atos.
Trata-se
de entender, também, o contexto que permite esta institucionalidade, no bojo de
uma série de elementos de âmbito social e cultural, com componentes locais e
externos às comunidades, na relação do macro com o microsocial. O aumento das
atividades do narcotráfico e suas conseqüências à população juvenil inserem-se
na envergadura das mudanças no mundo do trabalho e no processo de globalização
que desregulamenta conquistas sociais históricas do trabalhador; na facilidade
de lavagem do dinheiro oriundo de atividades ilícitas; devido aos avanços nos
processos comunicativos e à falta de regulamentação de governos nacionais em
relação às bolsas de valores, local de lavagem e; na maior articulação entre
criminalidades organizadas diversas: prostituição infanto-juvenil, imigração
ilegal de braços entre outras, em nível internacional. No país, das
conseqüências do aumento das desigualdades sociais, do desemprego e do
individualismo de massa. E em nível local das relações de desigualdades das
cidades e a segregação espacial de grupos específicos.
Os
jovens são suas vítimas preferenciais porque nos últimos anos foram
objetivados, tratados como meros consumidores, e para aqueles que não podem
compor tal seara, resta-lhe a via ilícita ou a eliminação, quando não as duas.
Reverter tal quadro não é tarefa das mais fáceis, mas requer refundar novas
sociabilidades e desfazer o quadro de institucionalização e de referência do
narcotráfico.
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FONTES DE JORNAIS CONSULTADAS
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O DIA. Nelson Perelo. Tráfico Premia Produtividade.
01/11/2001
Jornal do Comércio
[1] Sociólogo e Pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisa
[2] Coordenado pelo
Professor Jorge Atílio Silva Iulianelli e desenvolvido no âmbito de Koinonia
Presença Ecumênica e Serviço.
[3] Em reportagem recente, o
Jornal do Brasil revela dados da Polícia Civil que registra no período de 1993
a 2001, o desaparecimento de 5.674 pessoas, atribuído, em sua maioria ao
narcotráfico, em particular, e a criminalidade em geral. O desaparecimento
realizado pelos traficantes, geralmente reproduz técnicas utilizadas pelos
militares na época da ditadura contra presos políticos que eram mortos,
evitando deixar rastros. Embora a reportagem não se refira, é provável que
parte desses desaparecidos também possa ter sido executado por agentes da
polícia em seus conflitos com o narcotráfico.
[4] No entanto, somente em
1968, com o Decreto Lei nº 385 e em 1971, com a lei nº 5726, endurece-se a
legislação, com a utilização de processo sumário no caso de flagrante delito,
aumentando-se igualmente o período de reclusão para a prática delituosa do
envolvimento com as drogas.
[5] Lemgruber (1987) sublinha que a corrupção
policial migrou dos achaques ao jogo do bicho para outras áreas da delinqüência
como o tráfico de drogas, pois tal prática sempre correspondeu à complementação
salarial de policiais.
[6] Cabe
ressaltar, todavia, não haver um aumento do envolvimento com o tráfico
unilateral em relação aos adolescentes, ou seja, o envolvimento com o tráfico
aumenta entre a população adulta também, tornando-se o principal delito. Neste
sentido, conforme observou Adorno et
alli (2000) em relação à realidade de São Paulo, embora houvesse um aumento
de infrações cometidas por adolescentes no período 1993-1996 em relação ao
período de 1988-91, o perfil dos atos infracionais praticado por esta população
não difere daqueles praticados pela população adulta. Desta forma, busca-se
desmistificar a crença de que a população jovem, notadamente os adolescentes,
são mais violentos que a população adulta ou cometam mais crimes.
[8] As agrovilas são
aglomerações de glebas de terra, em um espaço determinado, onde os produtores
possuem o título de propriedade e as terras são irrigadas.
[9] A pesquisa foi
orientada pelo padre humanista francês Joseph Lebret. A direção e coordenação
técnica foram desenvolvidas pelos sociólogos José Arthur Rios e Carlos Alberto
Medina, respectivamente.
[10] Zaluar
(1985, 1994) tem uma reconhecida e original reflexão, incorporando à analise o
papel do tráfico internacional de drogas e o fascínio dos jovens por armas
poderosas e os seus papéis de segurança dentro das comunidades em que vivem. Um
dos elementos de atração dos jovens para o tráfico é a sua possibilidade de
atribuir status e poder.
[11] Segundo dados da
Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro relativas ao ano de 1998, as
faixas etárias de 20-24 anos e 15-19 anos apresentavam taxas altíssimas e eram
respectivamente as que continham as maiores taxas de homicídios (141,81/100.000
e 121,24/100.000) em relação ao restante da população. Dados da Delegacia de
Proteção da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro, organizados
por Arantes (2000), revela o aumento da apreensão de adolescentes por práticas
de delitos previstos na Lei de Entorpecentes. Em 1993, do total de adolescentes
apreendidos apenas 8,7% correspondiam àqueles delitos e em 1998 representavam
55,5% do total. O número passa de 167 para 2449. Estes indicadores podem ser
vistos de duas maneiras: representando um aumento real das infrações ou uma
maior repressão dos organismos de contenção e repressão em relação a estas
infrações. Creio que a combinação dos dois fatores melhor qualifica o fenômeno.
Acrescente-se, ainda, que o aumento se reflete tanto em relação à população
adulta quanto à população de adolescentes, fato desmistificador da máxima de
que os crimes praticados por adolescentes possuem características
próprias.
[12] (...) Quanta mais
elevada a “procura do consumidor” (isto é, quanto mais eficaz a sedução do
mercado), mais a sociedade é segura e próspera. Todavia, simultaneamente, mais
amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer
os desejos, ou entre os que foram seduzidos e passam a agir do modo como essa
condição os leva a agir e os que foram seduzidos mas se mostram
impossibilitados de agir do modo como se espera agirem os seduzidos. (Bauman,
1998:55)
[13] Ver Fraga (1998, 1999)
[14] Como
também observa Adorno (1991), o mundo do trabalho constituiu-se ponto de
referência para a inscrição no território da delinqüência, seja “porque
aquele mundo divide as fronteiras do permitido e das ilegalidades, seja porque
a delinqüência representa sua resoluta negação-negação da rotina, da disciplina
e da perda de autonomia, de domínio do tempo livre e de controle das condições
de existência. (...) (200)”.
[16] Enquanto, no período de
70 a 2000, a população, em geral, cresceu, a população rural decresceu.
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