AS DROGAS E O NOVO PERFIL DAS MULHERES
PRISIONEIRAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


Iara Ilgenfritz*

 “Entrei no crime (tráfico) porque é adrenalina pura.”
A. 26 anos, branca, traficante internacional, foi presa com o marido, que acabou sendo assassinado pela policia.

 

Este texto é a síntese de uma pesquisa realizada no Rio de Janeiro, entre os anos  1999 e 2000, junto às mulheres encarceradas no sistema penitenciário. O trabalho  consistiu, entre outras coisas, num ensaio para chamar a atenção dos formuladores de políticas públicas para as especificidades da população prisional feminina, que, por representar uma parcela muito reduzida do contingente de presos, é vista pela literatura e pelos governos como acessória[1].

A idéia, desde o início, foi a de realizar um mapeamento das condições em que se encontram as mulheres presas e, sobretudo, de tentar identificar situações de violência familiar e institucional pelas quais essas mulheres têm passado. Essa preocupação foi norteada pela hipótese de que existe uma relação, se não de causa e efeito, mas no mínimo de reprodução e continuidade, entre a participação em atividades criminosas e trajetórias de violências experimentadas na infância, adolescência e/ou fase adulta. Por outro lado, se pretendeu iluminar o cenário obscuro e perverso da violência exercida no interior das instituições que, como é sabido, estimulam a permanência no crime.

A metodologia adotada privilegiou o contato direto com a população carcerária pela aplicação de um questionário  individual  abrangente, realizado em espaço privado, com uma duração média de 50 minutos. Esse tempo foi muito difícil  de se estabelecer, pois as questões perguntadas abrangeram as histórias de vidas dessas mulheres, fazendo-as  recordar situações duras por que passaram, o que as levava à emoção e ao choro[2].

Variações no volume da população carcerária foi a primeira revelação do trabalho. O número de mulheres presas no sistema penitenciário estadual, em comparação ao último censo penitenciário de 1988, cresceu 132%, uma taxa de crescimento 36% superior à do aumento do número de homens presos no mesmo período.[3]

  

População carcerária do Estado do Rio de Janeiro, segundo o sexo - 1988 e 2000

 

 População carcerária do Rio de Janeiro

População residente no RJ com 18 anos ou mais de idade

Taxa de encarceramento (presos por cem mil habitantes)

 Crescimento da população carcerária 1988-2000 (%)

 

Nº absoluto

%

Nº absoluto

%

Total

Por cem mil habit.

1988

Total

8.556

100

7.617.425,00

100

112,3

 

-

Homens

8.283

96,8

3.594.792

47,2

230,4

 

-

Mulheres

273

3,2

4.022.633

52,8

6,8

 

-

2000

Total

16.890

100

9.489.469,00

100

178

97,4

58,5

Homens

16.257

96,3

4.461.795

47

364,4

96,3

58,1

Mulheres

633

3,7

5.027.674

53

12,6

131,9

85,5

 Fontes: (a) População carcerária: Ministério da Justiça/DEPEN; (b) População maior de 18 anos residente no estado do Rio de Janeiro: Ministério da Saúde/DATASUS, com base em dados demográficos do IBGE.

 

Esse dado surpreendeu bastante, embora o aumento de mulheres presas, 3,2% em 1988 e 3,7% em 2000, em comparação às taxas masculinas, tenha se apresentado pouco significativo, reforçando as estatísticas do mundo inteiro que revelam uma sub-representação da criminalidade feminina  nas populações prisionais[4].

           O que se observa nos últimos doze anos, na verdade, é um aumento do número de mulheres encarceradas por envolvimento no tráfico de drogas, seja como usuárias, seja como traficantes. Isso representa uma escalada de adesão a esses delitos por parte das mulheres, mudando as estatísticas de 32,6% em 1988, para 56,1% em 2000.  Nesse  mesmo sentido, em 1988 não havia nenhuma  mulher condenada por Extorsão Mediante Seqüestro, enquanto que em 2000 as estatísticas  apontam 9,3% de presas condenadas por esse crime.O  aumento é sintomático, considerando que se trata de uma infração penal tipicamente cometida por traficantes ou entre traficantes, com a finalidade de angariar recursos para os seus negócios e/ou para extorquir os grupos rivais.[5] Nesse caso o número de mulheres condenadas por envolvimento no tráfico de drogas e crimes afins passa para 65,4% em 2000.

  

D. tem 35 anos e foi presa três vezes por assalto a mão armada. Não sofreu violência familiar e, tampouco, do companheiro. Teve um irmão e um companheiro assassinados. Aprendeu a atirar e a usar a arma com desenvoltura e se diz assaltante profissional. Tem orgulho do que faz. E acha o crime “uma excelente profissão (apesar do risco). Mas qual não é?” Acha que “esta safra de presas não presta, não tem jogo de cintura. Aceita  provocação das funcionárias”.

 

 Mulheres presas no estado do Rio de Janeiro, segundo o crime pelo qual foram condenadas 1988 - 1999/2000

Motivo  da condenação

Censo 1988

 

População Carcerária Feminina 1999/2000

 

Delitos associados às drogas

89

32,6%

294

56,1%

Extorsão Mediante Seqüestro

0

0.0%

49

9,3%

Roubo

70

25.6%

97

18.5%

Homicídio

27

9.9%

30

5.7%

Lesão Corporal

6

2.2%

2

0.4%

Extorsão

1

0.4%

3

0.6%

Furto

63

23.1%

22

4.2%

Estelionato

11

4.0%

13

2.5%

Outros crimes

6

2.2%

14

2.7%

TOTAL

273

100,0%

524

100,0%

 

Evidentemente, há um novo cenário desenhado pelo alastramento do tráfico de drogas no Rio de Janeiro e no mundo, que agora vem seduzindo também as mulheres para uma atividade anteriormente fortemente limitada ao gênero masculino que não aceitava mulheres nas suas atuações.

Discussões à parte sobre as teorias da criminalidade feminina[6], certo que não se trata de uma maior disposição das mulheres para infringir as leis, mas seguramente porque as diversas engrenagens criadas em torno da  criminalização  das drogas, aliadas à corrupção dos agentes do estado e à impunidade “negociada” tanto pela  polícia como pelos traficantes, aumentaram o leque de possibilidades e as chances de praticar infrações, tanto para homens como para mulheres.

Os valores da sociedade patriarcal, presentes ainda na sociedade em geral, mas que têm uma conotação bastante  pronunciada nas famílias humildes (de onde procede a massa carcerária), ficaram evidentes nas respostas das prisioneiras quando perguntadas sobre o lugar que ocupavam na “rede” do tráfico. Em torno de 50% referiu-se  a funções  subsidiárias ou subalternas tais como “mula” ou “avião” (que transporta a droga), como “vapor” (que negocia pequenas quantidades no varejo), como assistente/fogueteira” (que controla a presença da polícia). Uma parte (27%) se definiu como “bucha” (a pessoa que esta presente na cena em que são efetuadas as prisões de alguém envolvido) e outras 10,7% como cúmplices. Muito poucas se identificaram como “vendedoras” sem especificar em que escalão se situavam e apenas uma pequena parte se intitulou nos papéis principais como “abastecedora/distribuidora”, “traficante”, “caixa/contabilidade”, “gerente” e “dona de boca”.

Vale lembrar que quando se trata de extorsão mediante seqüestro, as mulheres normalmente desempenham papel secundário, atuando, via de regra, na estrutura de suporte (cozinheiras de cativeiro, emprestando a casa, etc,) deixando aos homens as tarefas mais arriscadas.

 

V. tem 28 anos e  nasceu com sífilis. Quando era criança, a mãe e o padrasto a trancavam em casa, juntamente com os irmãos, e saíam para trabalhar. Segundo ela, foi introduzida nas drogas pelos irmãos e violentada sexualmente pelo padrasto. O marido a agredia, mas, como ele era bandido, dono de boca de fumo, ela não tinha coragem de denunciá-lo pois sabia que, se acionasse a polícia, iria morrer. Com 7 anos foi para a rua vender coisas e foi presa mais de 7 vezes.
 
No tráfico de drogas, tinha a função de enrolar papéis. Acha difícil não voltar para a droga quando for libertada.

 

Mulheres  presas por tráfico de drogas no Estado do Rio de Janeiro, segundo a posição que declararam ocupar no tráfico - 1999/2000

FUNÇÃO DECLARADA

%

Bucha

27,3

Consumidora

14,0

Mula / avião

13,0

Vendedora

12,7

Vapor

11,7

Cúmplice

10,7

Assistente / fogueteira

1,7

Abastecedora  / distribuidora

1,7

Traficante

1,7

Gerente

1,7

Dona de boca

1,7

Caixa / contabilidade

0,7

 

O fato de ocuparem posições subsidiárias torna as mulheres mais vulneráveis nas mãos da política de repressão ao tráfico, pois elas têm poucos recursos para negociar sua liberdade quando capturadas. 

Sobre a atuação policial, os dados que denunciam a prática de torturas, agressões e ameaças são realmente assustadores: 355 presas (65%) sofreram maus tratos por parte dos policiais, seja da Polícia Civil, Militar ou Federal. Eis algumas cifras dessa violência, que não constitui  um desvio eventual e esporádico contra as mulheres presas, mas um procedimento padrão no Rio de Janeiro[7], sobretudo contra as populações das favelas:

-       298 (83,9%) teriam sido xingadas e humilhadas;
-
       249 (70,3%) teriam sido espancadas;
-       189 (53,2%) teriam sofrido ameaças de morte;
-       189 (53,2%) teriam sofrido tentativa de suborno;
-       189 (38%) teriam experimentado outras formas de maus tratos, como sufocação com uso de saco plástico, agressão física, roubo, tortura psicológica  negligência e outras ameaças;
-       52 (14,7%) teriam sofrido afogamento;
-       50 (14,1%) teriam recebido choques elétricos;
-       38 (10,7%) teriam sido abusadas sexualmente;

 

“Os policiais têm um sítio onde levam as pessoas para bater, torturar e extorquir”.
H., 36 anos, branca, nível superior, sofreu maus tratos,violência sexual e suborno por parte dos policiais.
Foi detida com o companheiro traficante e ambos estão presos
.

Nas mãos da polícia, 68% das presas sofreram alguma forma de violência, como espancamento, choques elétricos, xingamentos, humilhações, abuso sexual, ameaças de morte, afogamento, sufocação etc. Somente na Polícia Civil, as mulheres citaram 71 diferentes delegacias onde esses atos foram cometidos, o que indica não se tratar de situações eventuais, mas de uma prática generalizada no estado.

 Além disso, 31% das presas tiveram um ou mais companheiros assassinados, 20,6% tiveram pelo menos um irmão morto por homicídio e 9,5% perderam um ou mais irmãos e um ou mais companheiros vítimas de assassinato[8].

G. Tem 10 irmãos, três assassinados e um desaparecido. Acusou o policial que matou seu irmão e foi quase sempre perseguida. O policial foi preso e condenado. Ela trabalhava no tráfico, guardava as drogas. Seu companheiro era traficante, dono da boca. Sofreu violência no Juizado da Infância e Adolescência e apanhou de palmatória em duas passagens pelo abrigo. É consumidora de cocaína. Os policiais quebraram tudo dentro da sua casa e ainda espancaram a filha pequena. Sofreu muita violência do companheiro, até que um dia reagiu e queimou-lhe o corpo. Diz que, quando sair da prisão, quer matar o policial.

 A violência não se resume, contudo, à esfera das polícias. Setenta presas (13,4% do conjunto das entrevistadas) passaram por juizados da infância e da adolescência em algum momento de suas vidas. Vinte delas (30%) afirmam terem sido tratadas com brutalidade.

“Elas querem mais que a gente morra”.
T. 48 anos, negra, fez um bolo para outra presa e foi para a “tranca”( castigo).

As condições no sistema prisional, evidentemente, estão longe de serem ideais. Ali também a violência faz parte do cotidiano das presas, embora esse tenha sido um dado difícil de ser esclarecido na sua real dimensão, pois  muitas  presas, com medo de represálias, não se manifestaram. Muitas Algumas faziam apenas gestos que  podiam significar um sim, mas sempre tendo o cuidado de olhar para todos os lados para se certificar  de que não estavam sendo vigiadas. Sobre esse particular, as pesquisadoras  de campo sentiram-se policiadas todo o tempo em que estiveram nas unidades para que não pudessem “ver demais” os métodos disciplinares de uma instituição totalitária que não gosta de testemunhas. Contudo, há relatos de espancamento (9,0%), de torturas (7,3%) e de ameaças (17,4%) por parte de funcionários e funcionárias. Ao todo, 24% das presas se disseram vítimas de alguma violência praticada pelo(a)s funcionário(a)s do sistema.

“A diretora diz que quem faz a lei na cadeia é  ela”.
F. 38 anos, 2º.grau completo, presa ao participar de um assalto.

Perguntadas sobre os principais motivos que as levaram ao crime, ou por que fizeram do tráfico de droga uma profissão, as respostas mais freqüentes foram influências de terceiros, quase sempre homens com quem têm ou tiveram vínculos afetivos fortes (maridos, companheiros, namorados, filhos), seguida de  dificuldades financeiras, aliadas à falta de perspectiva de emprego e da atração pelos  altos “salários” da droga. Histórias  dramáticas acompanharam as narrações sobre suas vidas, de sorte que entrar ou não para o tráfico nunca chegou a ser uma opção, uma escolha livre, mas uma necessidade e uma imposição, já que a maioria procede das favelas e dos bairros da periferia, onde o tráfico impera como uma máquina de fazer dinheiro para uns e uma máquina de destruir vidas para outros. Outro detalhe importante foi constatar que muitas das mulheres foram presas, nas portas das unidades, quando transportavam drogas para dentro dos presídios, principalmente dos masculinos, quando iam visitar familiares detidos.

 

Tabela 22 - Mulheres presas no Estado do Rio de Janeiro, segundo tipos de crimes pelos quais foram condenadas e motivos principais para cometê-los - 1999/2000

 

USO/ TRÁFICO DE DROGAS

CRIMES VIOLENTOS

CRIMES NÃO VIOLENTOS

OUTROS CRIMES COMBINADOS

TRÁFICO COMBINADO COM OUTROS CRIMES

Dificuldades financeiras

28,8

21,5

42,4

35,7

30,0

Influência de terceiros

39,1

54,0

33,3

42,9

35,0

Violência familiar

3,6

4,3

9,1

7,1

10,0

Outros

28,5

20,2

15,2

14,3

25,0

Total

100,0

100,0

100,0

100,00

100,0

  

M. tem quase 50 anos, é negra, oriunda da  zona rural de um estado nordestino. Não teve infância, pois trabalhava como escrava. Costumava apanhar do pai com chicote. Suas filhas, já  adultas, desapareceram. Teve 23 irmãos, dois dos quais assassinados pelo cunhado. Começou a trabalhar em produção de roupa e calçado. Com 9 anos cuidava dos irmãos. Mais tarde, tornou-se alcoólatra e viciada em cocaína. Morava em uma favela do Rio quando foi presa como “vapor”. Considera seu companheiro um parasita, que ganha uma miséria.  Em casa, era ela quem mandava.

Muitas delas não identificaram nenhum motivo que justificasse seu envolvimento com o crime, pois “nasceram na droga”  direta ou indiretamente. Originárias na grande maioria de zonas pobres da periferia e das favelas, algumas nasceram na prisão, filhas de pais criminosos e, quando completaram a idade penal, foram recolhidas ao mesmo presídio onde haviam nascido, depois de terem sido meninas de rua, praticando pequenos furtos e consumindo todo o tipo de drogas, desde cola de sapateiro a cocaína.

H. nasceu na penitenciária. Nunca morou com pais, avós ou parentes. Viveu a maior parte da infância e da adolescência nas ruas, com muitas passagens pelo Juizado da Infância e da Adolescência e por abrigos, de onde sempre fugia por receber castigos severos e sofrer espancamentos. Parte da família é alcoólatra e um dos irmãos é viciado em drogas. Dos 11 irmãos, 4 foram assassinados, assim como dois dos companheiros que teve na vida. Tem uma filha com 7 anos,  mas não sabe seu paradeiro. Não sabe ler nem escrever. Aprendeu apenas a assinar o nome e nunca freqüentou escola. Começou a furtar aos 8 anos, até ser presa, o que aconteceu 3 vezes. Sofreu violência do companheiro, de quem chegou a receber um tiro. Jamais pediu ajuda por temer a reação do parceiro. Ao ser presa pela última vez, estava grávida e abortou a criança como conseqüência dos maus tratos perpetrados pelos policiais. Foi espancada e asfixiada.  Quando sair da prisão, sonha em ter uma casa, encontrar a filha e dar-lhe “amor de mãe”.

É alta a proporção das mulheres que afirmaram ter abusado das drogas em algum momento da vida (42,2%), enquanto apenas 17,6% declararam ter bebido demais. Isso se deve, provavelmente, a uma tendência a minimizar os riscos do álcool, que não está envolvido em atividades ilegais.

 

“O presídio é uma escola onde se aprende de tudo. Aqui conheci a marginalidade e a droga”.
E. 44 anos, analfabeta, foi cozinheira de cativeiros.

Com relação a continuarem consumindo droga depois de presas, muitas relataram que  a droga entra livremente nas unidades, quer pela mão de familiares que subornam as agentes penitenciárias, quer pelas próprias funcionárias ou policiais que fazem a vigilância nas guaritas.Entre as prisioneiras, existem as “robôs” - presas que fornecem drogas –, que agem em comum acordo  com as funcionárias ou funcionários que também vendem  droga dentro das unidades.

No mínimo, a droga nos presídios é totalmente tolerada e  considerada um mal necessário, onde as autoridades ou são omissas ou são coniventes. Pode também funcionar como um elemento intimidador contra aquelas que  não consomem, pois é comum, dentro das unidades femininas, a “preparação de um flagrante” por parte de alguma agente penitenciária que quer encontrar razões para puni-las. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que a droga, dentro das unidades, não é combatida por inúmeras razões, dentre elas, a possibilidade de subornar, de intimidar e de usá-la como pretexto para a aplicação de uma disciplina individualizada ou de vingança pessoal.

 X. tem 24 anos, é  branca, filha de pai rico dono de usina que, segundo ela, teria abandonado a família. Se prostituiu aos 12 anos para conseguir dinheiro para estudar e furtava material escolar. Dos 3 aos 8 anos viveu em abrigos. Depois foi para rua, tendo vivido algum tempo em casas de prostituição (boates). Continua consumindo cocaína, que entra facilmente através dos familiares e guardas. Comprou droga de outra presa (“robô”) que é poderosa. Não pagou e foi  ameaçada de morte por ela. Forjou uma falta disciplinar para ser colocada no castigo (onde estaria isolada). Tem medo de morrer. Pede socorro para S.O.S. Alcóolicos Anônimos. Quer sair da droga.

 A principal característica dos traficantes do Rio de Janeiro, que  são  hóspedes constantes dos presídios masculinos, é a de pertencer a facções também denominadas comandos[9], sendo que no Rio de Janeiro os mais poderosos são o Comando Vermelho, o Terceiro Comando  e o Amigos dos Amigos, que dividem entre si o controle do tráfico nos morros. Um aspecto interessante de se observar nos presídios femininos é a completa ausência de comandos e grupos organizados, como ocorre nos presídios masculinos.

 “Acho que deveria ter facções no TB (Penitenciária Feminina Tavalera Bruce), pois só assim seriam
melhor ‘controladas’{ respeitadas} as relações das internas, igual às facções que existem nos presídios dos homens”. 

Z. 44 anos, é enfermeira com curso de  Pós-graduação e gostaria de trabalhar na enfermaria.

Ao contrário dos homens, que estão distribuídos pelas unidades penitenciárias por facções, as mulheres não pertencem a nenhuma facção e têm muita  dificuldade em se unir e se organizar. Estão sempre competindo: existem as que dependem do consumo permanente de drogas e por isso não podem se indispor com as funcionárias da casa;  as que vivem as funções de puxa-sacos ou alcagüetes, constantemente espionando para “entregar” alguém; as “crentes” (grupos de religiosas que pertencem às igrejas pentecostais) que têm privilégios de celas especiais (muitas atuam como alcagüetes); as estrangeiras, que sofrem todos os tipos de discriminação (todas condenadas por tráfico de drogas); as que trabalham e, como o trabalho nas prisões é escasso, não querem perdê-lo por nada (podem também atuar como espiãs); e, finalmente, as rebeldes, que não se sujeitam a nada, contestam sempre, vivem na “tranca”[10] (cela de isolamento), geralmente  são as mais jovens e drogadas.

 

Perfil demográfico e sócio-cultural das Prisioneiras

 

Idade, Cor e Escolaridade

A população carcerária feminina é bem jovem: 76,1% das presas têm entre 18 e 39 anos. O número de presas com idades entre 18 e 30 anos corresponde a 41,6%. Um dado interessante, porém, diz respeito a algumas  prisioneiras que ingressaram no comércio da droga com idade avançada, ou seja, depois de se aposentarem ou de atingirem a idade de 50/60 anos. É o caso de uma presa  estrangeira, de meia idade, aposentada e já avó, que começou sua carreira de “avião” com 53 anos, mas que pela falta de prática e pouca manobra com a polícia foi imediatamente presa e condenada.

Mulheres negras (pardas e pretas), assim como as mulheres mais jovens, estão sobre-representadas no sistema carcerário fluminense (56,5%). Contudo, essa taxa diminuiu nesses últimos doze anos, pois, segundo o Censo Penitenciário de 1988, as não-brancas perfaziam naquele momento 70% da população carcerária.[11]  Esse aumento da proporção de brancas, em parte, deve-se ao aumento de mulheres de qualquer cor envolvidas com droga, inclusive as brancas, como é o caso das estrangeiras de origem caucasiana condenadas por esse crime no Rio de Janeiro.

O perfil educacional das presas é nitidamente muito baixo: mais de dois terços (68,5%) das mulheres encarceradas nunca freqüentaram escola ou têm somente primeiro grau incompleto e 12,6% se disseram analfabetas.

Origem

Há uma absoluta  predominância de brasileiras, provenientes, sobretudo do Rio de Janeiro (74,8%) e de outros estados da Região Sudeste. Apenas 26 são  estrangeiras, na maioria africanas (9), portuguesas (5) e sul-americanas (4). Do total de presas, 89% disseram ter nascido e passado a maior parte de suas vidas em áreas urbanas.

 M. tem 26 anos, é estrangeira e queria conhecer o Brasil, além de ganhar dinheiro. Foi presa com o marido, que acabou sendo morto pela polícia quando viajavam com passaporte falso. Sente-se duplamente discriminada e desrespeitada em seus direitos.  “Não recebemos nenhuma visita” (...) Trabalhar é muito difícil (pois) não chamam as estrangeiras”.  Motivo para ter entrado no crime: “Adrenalina máxima”.

 

Trabalho

Antes da prisão, 94,1% das mulheres já haviam trabalhado em alguma atividade remunerada e, quando foram presas, quase 60%  estavam trabalhando como  domésticas (24,6%), no comércio (23,0%) e como prestadoras de serviço (11,6%), sendo que  9,%  declararam estarem envolvidas em atividades criminosas.

 “Acho difícil não voltar para a droga quando for libertada
   X., 28 anos, negra, criada na Favela do Lixão, nasceu com sífilis. Viveu a maior parte de sua vida na prisão.

 Como se vê, predominam ocupações de baixa qualificação, salários muito baixos. As atividades  de comércio devem ser interpretadas com muita cautela, em se tratando de mulheres condenadas pelo tráfico de drogas, pois esse comércio é informal, conhecido como de   camelô (venda ambulante na rua) que, em determinadas circunstâncias, muito tem servido à venda e distribuição de drogas, principalmente para crianças, jovens e estudantes universitários nas portas e  mesmo dentro dos estabelecimentos de ensino. Portanto, embora, apenas 9% das condenadas tenha admitido praticar atividades criminosas, é possível deduzir, com certa margem de acerto,  que muitas que se definiram como comerciantes podem estar camuflando a atividade para comercializar drogas.Destaca-se ainda que a maioria das presas (54%) disse ter começado a trabalhar antes dos 16 anos de idade, sendo que 24,6% começaram antes dos 13 anos de idade.

Quanto ao trabalho prisional, esse é quase inexistente, embora uma parte (52,1%) das presas sejam as encarregadas dos serviços de limpeza e conservação das unidades, bem como de outros serviços como cozinha, enfermaria, cantina etc. Apenas 61 das entrevistadas (11,6%)  exercem trabalho remunerado.

 

As mulheres presas estão imersas em histórias de violência

 C. roubava e se prostituía com turistas em Copacabana. Aprendeu a roubar até de policiais e foi presa mais de 5 vezes. Passou pela D.P.C.A. mais de 3 vezes, pelo Juizado da Infância e da Adolescência e esteve recolhida mais de 3 vezes em abrigos. A última vez em que foi presa tinha roubado 275 anéis, porém só apareceram 05 diante do juiz. Os demais desapareceram na Delegacia. Os policiais a espancaram na delegacia a ponto de ela perder seus dentes e ainda lhe pediram R$10,00 como suborno. Tem problema de álcool  e droga na família e cheira cola de sapateiro desde menina.

Y. tem 28 anos e foi tratada a base de surras, tapas, cascudos, xingamento e humilhações durante a  infância. É viciada em cocaína e diz que o vício destruiu sua vida. - “É difícil conviver com tantos ratos no presídio. A água é ruim, poluída. Os ratos invadem a galeria (...) e tem interna com febre alta”. Queixa-se de muita violência na unidade. Segundo ela, os agentes andam armados.

G. tem 10 irmãos, três assassinados e um desaparecido. Acusou o policial que matou seu irmão e foi quase sempre perseguida. O policial foi preso e condenado. Ela trabalhava no tráfico, guardava as drogas. Seu companheiro era traficante, dono da boca. Sofreu violência no Juizado da Infância e Adolescência e apanhou de palmatória em duas passagens pelo abrigo. É consumidora de cocaína. Os policiais quebraram tudo dentro da sua casa e ainda espancaram a filha pequena. Sofreu muita violência do companheiro, até que um dia reagiu e queimou-lhe o corpo. Diz que, quando sair da prisão, quer matar o policial.

 S., 38 anos, nasceu no Nordeste, de onde veio pequena. Dos quatro irmãos, três foram assassinados. Começou a trabalhar aos 14 anos para sustentar seu vício de cocaína. Sua função no tráfico era  vender droga no presídio quando visitava o companheiro, preso por assalto à mão armada. O marido  violento a esbofeteava... Pediu ajuda religiosa e hoje é crente da Assembléia de Deus.

L. tem 40 anos e viveu  até a idade de 6 anos com pais. Dos 6 aos 10 anos esteve em abrigos e, a partir dos 10 anos, ficou com outros  parentes. Tem o 3º grau incompleto, pois deixou os estudos para trabalhar. Quando foi presa, vendia entorpecentes e era viciada em cocaína. É portadora do vírus HIV, contraído do companheiro, de quem apanhava. Foi presa quatro vezes como vendedora “autônoma” de droga. Queixa-se de negligência no atendimento médico,  enquanto esteve presa na delegacia,  onde sofreu espancamento. Sonha em  acabar faculdade, fazer mestrado e doutorado.

A violência foi e continua sendo um elemento constante na vida das mulheres entrevistadas, tanto do ponto de vista da experiência individual, quanto em relação aos parentes próximos. Mais de 95% foram vítimas de violência em alguma das seguintes situações: a) na infância, por parte dos responsáveis; b) na vida adulta, por parte dos maridos/companheiros e c) quando foram presas, por parte de policiais civis, militares ou federais; 75% das presas sofreram violência em pelo menos duas dessas situações e 35% nas três circunstâncias.

Do total de presas, 72% disseram ter sofrido violência física, psicológica ou sexual na infância; 74,6% foram vítimas de um ou mais desses tipos de agressões no casamento e 57,1% disseram-se vitimadas em ambas as situações.

O que se conclui deste breve estudo, baseado nos relatos das mulheres presas, é que a maior parte delas chega às prisões trazendo uma história prévia de maus-tratos e/ou abuso de drogas (próprio ou de familiares próximos). Isso não significa que tais experiências possam ser consideradas indutoras da criminalidade ou diretamente responsáveis pela entrada no sistema penal, pois certamente a maior parte das mulheres vítimas de agressão, assim como das dependentes de álcool e de outras drogas, está fora das cadeias e penitenciárias. O que os dados mostram é que a prisão, tanto pela privação da liberdade, quanto pelos abusos que ocorrem em seu interior, parece ser apenas mais um elo de uma cadeia de múltiplas violências que conformam a trajetória de uma parte da população feminina. O ciclo da violência, que se inicia na família e nas instituições para crianças e adolescentes, perpetua-se no casamento, desdobra-se na ação tradicional das polícias e se completa nas penitenciárias, para recomeçar, provavelmente, na vida das futuras egressas.

Assim como não tem havido esforços efetivos no sentido de compreender as motivações e as circunstâncias em que ocorrem os crimes praticados por mulheres, não existem iniciativas no sentido de prevenir a criminalidade feminina e, tampouco, de conceber uma política penitenciária específica para as mulheres presas.  Diante desse cenário de negligência e esquecimento da questão de gênero, não surpreende o fato de as mulheres só serem lembradas quando um crime de grande repercussão,  que tem a participação ou a autoria de uma mulher,  chega às manchetes de jornal. Nesses momentos, produz-se uma atmosfera sensacionalista, em relação a uma suposta escalada de participação das mulheres no crime, até que a violência praticada por homens retorne à cena e elas voltem a ser novamente esquecidas. 

 


* Advogada, professora de Criminologia, membro do Conselho Carcerário da Comarca do Rio de Janeiro.

[1] O projeto iniciou em julho de 1999, como parte do programa de Segurança da Mulher  que estava sendo implantado pela Subsecretaria de Pesquisa e Cidadania, sob a coordenação geral da Secretária Bárbara Musumeci Soares, responsável pelos programas de segurança da mulher, e deu origem ao livro Prisioneiras: Vida e Violência Atrás das Grades, de Bárbara Musumeci e Iara Ilgenfritz, Editora  Garamond, RJ, 2000.

[2] Foram realizadas 548 entrevistas, o que representou uma taxa de mais de 88% do total da população  que era de 633 detentas.

[3] Quando se considera o número de pessoas presas para cada cem mil habitantes do mesmo sexo, verifica-se que, no período em questão, a taxa masculina aumentou 58,1% e a feminina, 85%.

[4] Diversas teorias que discorreram sobre as especificidades do crime “feminino” partiram de uma visão tradicional do papel  da mulher na família e na sociedade. LOMBROSO e FERRERO (século XIX) associavam a prostituição à criminalidade típica das mulheres. No decorrer desse trabalho, mesmo com uma nova leitura do papel da mulher na sociedade,  pode-se constatar que ainda prevalecem esses estereótipos.

[5] A seguir, será descrita a procedência desses grupos que disputam o controle do tráfico, conhecidos por comandos e/ou facções.

[6] Lombroso já falava, no final do século XIX, sobre a mulher delinqüente: Se pudéssemos provar  que a mulher é intelectualmente e fisicamente um homem parado no seu desenvolvimento, o fato mesmo de que ela é mais piedosa e menos criminal que ele compensa avantajosamente esta inferioridade. C.Lombroso et, in La donna delinquente, la prostituta et la donna normale, ed. Alcan, 1896.

[7] Pesquisas realizadas recentemente dão conta da violência policial no Rio de Janeiro como a que mais mata no Brasil. São quase três mortos para cada ferido e 65% das vítimas levam tiro pelas costas. Fonte: “O Globo”, 21.05.2001, pág.03 – Retratos do Rio.

[8] Esses assassinatos são os efeitos da guerra pelo pó entre as facções rivais, mas, sobretudo, têm a ver com a atuação brutal e repressiva das polícias, muitas vezes sócias do “negócio”e que sobem o morro para se vingarem ou para praticarem a “mineira” (extorsão).

[9] A história dos comandos originou-se nas cadeias, na época do governo militar (1964-1985), quando os presos políticos passaram para os presos comuns conhecimentos de organização e resistência.  Os comandos disputam hoje o controle das prisões com a cumplicidade e a conivência dos agentes carcerários e da polícia, que não se inibem em extorquir os detentos, protegidos pela certeza da impunidade. Disputam, também, os pontos de venda de droga, conhecidos nas favelas como “bocas de fumo”. Os seus lideres ficam famosos e viram heróis quando abatidos pela policia. Mas as lideranças são rapidamente renovadas por outros que já atuam na linha de frente. 

[10] Cela de castigo, onde as presas ficam isoladas pelo tempo que durar a punição. São espaços ínfimos, mal iluminados, com uma cama de alvenaria, às vezes sem colchão ou coberta de cama (que tem que ser levada pela interna), onde a comida é servida sem talher, sem direito a tomar sol e onde o a higiene pessoal (Banho) vai depender da boa vontade da plantonista. Hoje em dia, no sistema, a cela de castigo é denominada de ‘zona de segurança’ ou ‘seguro’ quando é a presa que pede para ser mandada para lá por estar sendo  ameaçada por outra.

[11] Considerando que tanto na pesquisa de 1999/2000, quanto no Censo de 1988 a definição de cor foi auto-definida pelas prisioneiras, a variação pode expressar apenas critérios de autoclassificação entre um  levantamento e outro. Além disso, as categorias raciais no Brasil são relativamente fluidas e mutáveis, especialmente quando auto-atribuídas.

 


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